Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Extinção e fusão de freguesias : uma tragicomédia em seis actos e um epílogo.

Foto Diário do Alentejo
Presumimos que por opção editorial, o Diário do Alentejo dedicou duas das suas últimas edições, às freguesias de Gomes Aires e Pereiras-Gare, cuja extinção/fusão foi aprovada, entre outras, pelas assembleias municipais em que se integram, Almodovar e Odemira, respectivamente. De resto, foram estas as únicas assembleias do distrito de Beja que tomaram tal decisão, já que todas as outras se pronunciaram contra esta medida, na linha do que a maior parte fez, a nível nacional.
Nessas duas reportagens podemos sentir diversas reações, quer entre a população, quer entre os autarcas das duas freguesias : a desilusão, a resignação, a injustiça, a revolta. “Têm levado tudo daqui para fora. A única coisa que não conseguem levar é a nossa igreja e a nossa fé”, alguém dizia em Gomes Aires ou  “É mais um prejuízo para as pessoas que cá moram”, desabafava um morador de Pereiras-Gare.
Curiosamente, nesta interessante rúbrica do DA dedicada às localidades da nossa região, já tinham sido abordadas (premonitoriamente, dizemos nós), as quatro freguesias do concelho de Beja vítimas deste processo, neste caso através da proposta da UTRAT, o organismo que o governo encarregou de levar à prática esta alteração político-administrativa : São Brissos, Trindade, Quintos e Mombeja. E foi nesta última que um poeta popular local afirmou, referindo-se ao encerramento da escola :  “Uma aldeia sem escola/É como uma casa sem pão”. Que dirá ele, agora que, depois da escola fechada, é a própria freguesia que se extingue?
Este tem sido um processo muito atribulado, com situações que quase fazem lembrar uma tragicomédia, com vários actos, que começa em Maio de 2011.
Acto 1.
Do Memorando assinado entre a troika e o governo de José Sócrates, no dia 3 de Maio : “3.44. Reorganizar a estrutura da administração local. Existem actualmente 308 municípios e 4259 freguesias. Até Julho de 2012, o Governo desenvolverá um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número dessas entidades”. Sobre este ponto, escrevia, poucos dias depois, um comentador num jornal nacional, que esta era uma das medidas que não iria ser concretizada na totalidade. Referia-se, é claro à redução de municípios, que, como se vê ficou para as calendas gregas, já que apenas o “elo mais fraco”, as freguesias, foi objecto dessa “reorganização”. O que revela que há, entre os nossos políticos, muitos “Cabrais” que temeram novas “Marias da Fonte”, caso a extinção de municípios fosse para a frente.
Acto 2.
Uma semana depois, no dia 10 de Maio, o Conselho Directivo da Associação Nacional de Municípios aprova, por unanimidade, uma resolução em que, nomeadamente se dizia : ““No caso das freguesias, a diminuição do seu número poderá também não implicar reduções significativas de custos e não deverá ser feita com base em regras cegas e universais (…) Deve ainda ter-se em conta que, em freguesias mais longe das sedes de concelho, onde já fecharam serviços como escola, correios, centro de saúde, entre outros, o único ponto de contacto das populações com quaisquer serviços públicos é a Junta de Freguesia que, por um lado, as representa e, por outro lado, funciona como elo de ligação. Nestas situações, a redução do número de freguesias pode contribuir para acentuar o isolamento e abandono das populações.”
Acto 3.
A contrariar esta resolução, numa posição mais “troikista” que o próprio memorando, como que a justificar a posição do seu partido, o presidente da Câmara Municipal de Beja apressou-se a dizer que “"…concorda ‘em absoluto’ com a redução de municípios e de freguesias" e que "não faz sentido o país ter freguesias e municípios demasiado pequenos, às vezes uns ao lado dos outros, ‘quando apenas um órgão de gestão poderia gerir as necessidades’ sem duplicar órgãos de gestão e eleitos (…)  O autarca considerou ainda que em Beja existem condições para a supressão de algumas freguesias, dando outra dimensão às freguesias que se mantiverem.". (Correio Alentejo, 13 de Maio).
É claro que, mudada a conjuntura política, com a vitória do PSD, Pulido Valente vai mudar de opinião (tal como já tinha feito, aliás, com a questão das ligações ferroviárias directas a Lisboa e da extinção dos Intercidades).
Acto 4.
Entretanto, vão sendo conhecidas algumas situações que, para além de caricatas, pressupõem oportunismos políticos conjunturais, fruto da “ditadura das maiorias” em algumas assembleias municipais, que aprovaram propostas de extinção/fusão de freguesias.
Por exemplo, na Assembleia Municipal de Santarém que visava a revogação da pronúncia desse órgão, aprovada na sessão de 20 de Julho deste ano, os presidentes de duas juntas de freguesia que irão ser agregadas quase chegaram a vias de facto, tendo mesmo sido chamada a PSP, para serenar os ânimos (Diário de Notícias, 11 de Outubro). Nesta reorganização, que elimina nove freguesias, o PSD (que tem a maioria na AM) foi acusado de “cozinhar” o mapa com base em expectativas eleitorais.
Talvez não tenha sido por acaso que, já em Dezembro de 2011, o jornal regional O Mirante tenha escrito que “Autarcas [de Tomar] receiam que extinção de freguesias leve a motins”.
Acto 5.
Bem mais perto de nós, ainda que não seja conhecido qualquer acto de violência, a pronúncia da Assembleia Municipal de Odemira (de maioria PS), uma das únicas quatro do Alentejo a tomar esta decisão, tem sido igualmente acusada desse oportunismo político, ao aprovar um novo mapa, em que todas as quatro freguesias rurais extintas são, neste momento, geridas pela CDU. Curiosamente, como se pode ver na excelente infografia publicada no Diário do Alentejo de 26 de Outubro, a proposta da UTRAT apenas propunha a extinção de uma freguesia rural – Luzianes-Gare – para além da junção das três consideradas urbanas. Para adensar mais as desconfianças, a proposta da AM agrega apenas duas destas, ficando a terceira – Boavista dos Pinheiros – de fora (por sinal, esta autarquia é dirigida pelo PS).  
E, se uma das justificações apontadas nessa pronúncia é a de que as quatro freguesias a extinguir são recentes (criadas entre 1985 e 1989) e vão voltar a integrar as freguesias de onde tinham saído, “por razões de natureza histórica e cultural”, o que dizer, então, da última freguesia criada em Odemira, precisamente Boavista dos Pinheiros, desanexada (com toda a razão) das freguesias urbanas de Salvador e de Santa Maria apenas em 2001? Neste caso, os critérios temporais, histórico e cultural já não se aplicam?
Razão tinham os que, na concentração em Beja, no passado dia 27 de Outubro, empunhavam uma faixa preta onde se podia ler “A Freguesia de Zambujeira do Mar está de luto”.
Acto 6.
E agora? Passado que foi o prazo para a pronúncia das assembleias municipais, a UTRAT apresentou a proposta de reorganização, que prevê a extinção de mais de mil freguesias, levantando desde logo um coro de críticas por todo o País e por todo o espectro político, da maioria ou da oposição, e de ameaças de tomadas de posição mais duras por partes de várias autarquias e populações atingidas. Também já se escreveu que este processo poderá, inclusivamente, pôr em causa as eleições autárquicas do próximo ano. A ANAFRE, por seu lado, diz que esta reorganização originará uma poupança de apenas 6,5 milhões de euros e apoia as freguesias que queiram apresentar providências cautelares a suspender a proposta de extinção, enquanto aguarda a decisão do Tribunal Constitucional sobre o assunto.
Epílogo.
Como se pode ler na última edição do Diário do Alentejo, também no nosso distrito são várias as vozes a levantar-se contra esta proposta, desde partidos políticos, a juntas de freguesia e a câmaras municipais. Autarquias como Aljustrel, Ourique, Mértola, Serpa ou Santiago do Cacém, já se manifestaram publicamente contra as alterações nos seus municípios e preparam acções concretas para as contestar.
Enquanto isso, ainda segundo este trabalho do DA, o presidente da Câmara de Beja, com a sua habitual ambiguidade, limita-se a dizer que se mostra “…contrário a qualquer proposta sem que haja um estudo aprofundado sobre a realidade do território do concelho, não compreendendo as razões para que a freguesia de Mombeja seja integrada em Santa Vitória e Quintos na freguesia da Salvada. “. Ou seja, sem se manifestar frontalmente contra, limita-se a questionar porque vai Mombeja juntar-se a Santa Vitória (e não a Beringel?) e Quintos à Salvada (e não a Baleizão?), sem se pronunciar sobre as restantes freguesias que vão ser agregadas (São Brissos, Trindade e as urbanasa) ou sobre iniciativas que contrariem estas medidas.
Tal como escrevíamos em 24 de Junho de 2011, no Correio Alentejo, acerca da sua posição sobre esta imposição antidemocrática do memorando no Poder Local Democrático, apetece terminar com a mesma frase (com as devidas alterações, entretanto verificadas) : “Assim, não será de estranhar se vermos, um dia destes, Pulido Valente a tentar convencer os autarcas e as populações das freguesias de Quintos (pequena), Salvada e Cabeça Gorda (próximas), e dos municípios de Alvito (pequeno), Cuba e Vidigueira (próximos), a iniciar o debate para a sua fusão numa só freguesia e num só município.
A bem do cumprimento do Memorando.”
30 Novembro                                               




Foto de José Baguinho


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Andarilhar.


Esta é uma crónica diferente.
Uma crónica que começa com uma reflexão sobre o seu próprio título.
Um título que é apenas um verbo, um simples verbo da nossa língua.
Andarilhar, eis o verbo que não parece verbo, tão inconsequente parece a sua conjugação : eu andarilho, tu andarilhas, ele(a) andarilha…
Melhor dizendo, um verbo que mais parece aqueles que o Mia Couto “inventa” e que nós, só por vergonha, não usamos na língua que é a nossa, que é a dele, a que Pessoa chamou um dia de nossa pátria.
Cervejar, estrelinhar, praiar, que lindos verbos moçambicanos, os que definem uma cerveja fresca, um céu estrelado no verão, ou uma praia de areias finas e águas transparentes.
No dicionário, andarilhar pode ser “andar de um lado para o outro”, mas também “vaguear”. Ou ainda, diremos nós, participar, viver, sentir, as “Palavras Andarilhas”.
Lindo, este título, para um encontro de afectos e de partilhas, que transforma Beja na “Cidade dos Contos”.
Não em mais uma “capital”, palavra já gasta de tão usada e abusada ( a última conhecida é a do “frango do campo” ), mas na cidade que acolhe andarilhos do país e do mundo, contadores, educadores ou apenas extasiados ouvintes de todas as idades.
Um encontro que nos deixa orgulhosos, como naquele dia em que, na Fundação de Serralves, num seminário sobre temas culturais, alguém que soube que éramos de Beja, deixou públicos elogios às Andarilhas, à biblioteca que as acolhe, às pessoas que as realizam e à cidade que as acarinha.
Porque as Andarilhas nasceram no único local onde tal magia podia ter acontecido, numa “biblioteca sem sono”, e porque a memória dos homens é curta e muitas vezes injusta, não podemos nunca esquecer os seus três principais artífices:  Cristina Taquelim, a alma mater das dez edições já realizadas e da que vai ter lugar este ano; Figueira Mestre, o sonhador e desassossegado arquitecto da casa mãe, inovadora e revolucionária; Carreira Marques, o autarca poeta que via a Cultura, não como adorno ou como emblema para a lapela, mas como algo importante para a formação dos cidadãos do concelho que dirigia.
Mas, tal como Brecht escreveu nas “Perguntas do operário que lê”, quem constrói esta Tebas dos nossos tempos, esta cidade do Serafim, do Fontinha, do Quiko, da Marina, do Maurício, do Bakk, do Portillo, do Torrado, e de tantos outros, são também os muitos outros operários das palavras, desde logo os incansáveis trabalhadores da biblioteca e dos outros sectores da câmara municipal, aos voluntários que dão o seu tempo a esta causa cultural.
Como aqueles, artistas e público, que no passado dia 13 de julho se encontraram no Pax Julia, para dar um fraterno Abraço às Andarilhas, mostrando, com esse acto o quanto são necessárias à autoestima dos bejenses. Porque o seu prestígio não se confina apenas às fronteiras deste nosso pequeno rectângulo, estendendo-se a várias partes do mundo ( talvez não seja por acaso que a edição deste ano é apoiada pela organização do Ano do Brasil em Portugal ), numa prova da sua qualidade.
E é por tudo isto que, no final deste mês, num novo espaço central – o Jardim Público – mais uma vez todos os caminhos vão dar a Beja. Vamos, pois, andarilhar e, quem sabe, estrelinhar numa noite quente, embalados pelos contos que, como os seus mentores dizem, acontecem “…  Porque acreditamos no contributo da palavra, da literatura, da arte em geral para a formação do Homem Novo….”.
3 Agosto







Memória 1

Memória 2



domingo, 29 de julho de 2012

A família Victoria – raízes alentejanas no sul do Brasil.


Nos países com uma história mais recente, fruto da colonização de povos oriundos de várias partes do mundo ( como é o caso, por exemplo, dos Estados Unidos e do Brasil ), existe, por parte dos seus habitantes, uma grande vontade em conhecer as suas raízes. Este fenómeno é menos comum nos países como Portugal, com uma história mais longa, e em cujo território se estabeleceram povos tão diversos como os romanos, os visigodos ou os muçulmanos.
A não ser alguns descendentes de famílias nobres, dificilmente qualquer português conseguirá ir muito longe na sua genealogia, isto se conseguir encontrar os registos paroquiais dos seus antepassados mais remotos.
Há algum tempo, numa pesquisa efectuada na internet, tive conhecimento da existência de um blogue intitulado “Família Victoria” ( http://familiavictoria.blogspot.pt/ ), da autoria de um cidadão brasileiro, Arthur Victoria da Silva, natural e residente no Rio Grande do Sul, o estado mais meridional do Brasil.
Neste blogue, como o nome indica, procura-se reconstituir a família Victoria, desde a sua origem, até à actualidade, reconstituição essa acompanhada por vários episódios marcantes ao longo dos quase 230 anos da sua existência.
De facto, segundo informações recolhidas por Arthur Victoria, a família teve origem no casamento, em 1783, na localidade do Estreito, nesse estado, de Francisco José de Santa Victoria com Ana Joaquina de Jesus.
A noiva era descendente de açorianos, o que não é de estranhar, visto serem originários dessas ilhas atlânticas muitos dos povoadores dessa parte do Brasil, sobretudo na segunda metade do século XVIII. Há quem até considere os açorianos como o povo mais importante na colonização do Rio Grande do Sul, e talvez não seja por acaso que um dos mais importantes prémios culturais desse estado, atribuído pela prefeitura da capital, Porto Alegre, tenha precisamente o nome de “Açorianos”.
Quanto ao noivo, de acordo com o que Arthur Victoria escreveu no seu blogue “… deve ter sido militar que lutou contra os espanhóis [guerras pelo controle de territórios nas actuais fronteiras do Brasil e do Uruguai] e resolveu estabelecer-se no Estreito”. O mais curioso, no entanto, é a sua origem. Citando de novo o blogue, “Francisco José de Santa Victoria, conforme registros de nascimentos de seus herdeiros, era nascido na Freguesia de Santa Victoria, em Beja, Portugal”, vindo daí o apelido que iria dar origem à família.
Família que, diga-se em abono da verdade, foi bastante numerosa, começando neste casal, que teve 10 filhos que, por sua vez, vieram igualmente a reproduzir-se também em quantidades apreciáveis. Ainda que hoje haja descendentes dessa família espalhados em várias partes do Brasil, a grande maioria radicou-se em localidades gaúchas, nomeadamente em Capão do Leão, município com cerca de vinte e cinco mil habitantes, “emancipado” há apenas trinta anos da cidade vizinha de Pelotas. Um dos membros da família – Getúlio Victoria – exerceu por duas vezes as funções de prefeito desse município, em 1985 e em 1993.
Para completar o puzzle, faltava apenas a confirmação da data (que se presume ser 1756) e o local do nascimento do alentejano que deu origem a esta família, o que me foi solicitado por Arthur Victoria.
Só que, infelizmente, nem no Arquivo Distrital de Beja, nem no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, se encontram os livros dos registos paroquiais de 1731 a 1771. Existe um hiato, não se podendo comprovar os registos de nascimentos, casamentos e óbitos da freguesia de Santa Vitória nesse período.
Ficou, assim, por provar, a verdadeira origem de Francisco José, o que não invalida a hipótese da existência de raízes alentejanas na família Victoria, fundada no século XVIII, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul e que, periodicamente, se reúne para confraternizar.
27 Julho





Encontro dos Victoria, em 15 de Abril de 2010 / fotos de Idylio Roberto :




sexta-feira, 6 de julho de 2012

Triste espectáculo.


No programa de História do 7º Ano de Escolaridade, os alunos estudam a democracia em Atenas, no século V aC. Democracia imperfeita, é certo (assente numa sociedade esclavagista e com as mulheres com um papel secundário – que Chico Buarque tão bem retratou na canção “Mulheres de Atenas”), mas que leva os jovens estudantes a descobrir, não só o seu significado (poder do povo), mas também o da palavra política – governo da polis/cidade estado).
E é na transposição desses conceitos para a história contemporânea do nosso país que, invariavelmente, este último conceito surge associado, nas palavras dos alunos, a um conjunto de práticas nada abonatórias para os políticos – aqueles que se dedicam a essa tão nobre quanto desacreditada função. E vêm à baila frases como “são todos iguais”, “só querem é encher-se”, “criam tachos para familiares e amigos”, etc.
Não é fácil desmontar tais preconceitos, reproduzidos pela opinião pública, alimentados por uma certa comunicação social e, pior do que isso, fomentada por práticas de políticos que, escudados pelo exercício de cargos públicos, dão esses maus exemplos que, injustamente, acabam por atingir aqueles que têm uma conduta séria e irrepreensível, enquanto eleitos pelo povo que representam.
Associada a essas práticas menos sérias (e até, em alguns casos, ilegais), existe ainda a ideia de uma certa impunidade, quer pela inexistência de uma débil opinião pública, que se mostra incapaz de uma censura que leve ao afastamento de quem as executa, quer pela sensação de que a própria justiça se mostra impotente para condenar as ilegalidades cometidas.
É claro que o surgimento de casos e nomes na comunicação social, não significa, necessariamente, crime e castigo, mas não podemos ignorar que situações como BPN, Freeport, submarinos, Face Oculta, associados a políticos como Dias Loureiro, Sócrates, Duarte Lima, Armando Vara, Isaltino Morais, entre outros, deixam no ar a suspeita de uma certa promiscuidade entre negócios e política, alicerçada no facto de alguns desses nomes, sendo originários de famílias modestas, em poucos anos atingiram patamares de riqueza incompatíveis com os vencimentos auferidos nos cargos políticos exercidos.
Perante essas situações, a resposta dos órgãos judiciais tem revelado uma incapacidade confrangedora, o que leva as pessoas a concluírem que há dois pesos e duas medidas, quando se trata de aplicar a justiça. Pior do que isso, fica a sensação de que os que exercem esses órgãos, nomeadamente os mais elevados – Procurador Geral da República e Presidente do Supremo Tribunal de Justiça  - tomaram partido, deixando de lado a imparcialidade exigida. Já para não falar das famosas prescrições, que acabam por ilibar “na secretaria” aqueles que já tinham sido condenados por crimes comprovados.
Não bastavam estas desconfianças, eis que surgem também notícias sobre ligações perigosas entre os serviços secretos (que deveriam estar acima de quaisquer suspeitas), política, negócios e sociedades secretas, que não abonam nada a favor da credibilidade dessas entidades.
Perante este rosário de situações nada democráticas, casos como o das habilitações académicas aparentemente forjadas – ontem Sócrates, hoje Relvas, amanhã logo se verá – surgem quase como “normais”, justificadas por uma certa ideia muito divulgada de que os “espertos” são os que triunfam, elevando ao topo a teoria do mérito do “chico-espertismo”, tão do agrado de certas mentes ultra liberais.
Enquanto isso, alguns persistem em atirar-nos areia para os olhos, pensando que engoliremos sem reagir todas as suas mistificações. Só assim se percebem as afirmações de Carlos Zorrinho, ao elogiar o “sentido de responsabilidade” do deputado Ricardo Rodrigues, que se demitiu da direcção do grupo parlamentar do PS, na sequência da condenação pelo furto dos gravadores dos jornalistas da revista Sábado.
Como se esse “sentido de responsabilidade” não fosse inerente a quem é eleito, quer para deputado, para presidente de junta de freguesia ou para presidente da república e fosse preciso esperar por uma decisão judicial para se tomar uma posição que, perante tão degradante episódio, há muito deveria ter sido tomada.
São todos estes (maus) exemplos que levam os jovens alunos de 12/13 anos a achar a política como um espectáculo, abrilhantado em períodos eleitorais por festas, com a participação especial de emigrantes africanos e orientais, para encher plateias e com a participação de actores cuja principal função é debitar promessas, por vezes com novidades como a referência a “pilares”, não de betão mas de esferovite, que caem mal o vento sopra um pouco mais forte.
Felizmente que a política não é apenas feita deste (triste) espectáculo e que muitos homens e mulheres continuam a servir a democracia recuperada com o 25 de Abril, em defesa dos seus ideais e dos seus princípios, independentemente das cores partidárias que vestem, em nome do povo que os elegeu.
Afinal, não foi isso que nos ensinou Péricles há 2500 anos?
6 Julho




É só mudar o escudo e a legenda e temos uma boa imagem a ilustrar o texto

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Defender a Região – unidade e coerência nas posições.


No passado dia 21 de Maio, nove entidades da nossa região (Associação de Municípios, Instituto Politécnico, Turismo do Alentejo, as associações de empresários, comerciantes e agricultores, entre outros), reuniram-se com um objectivo bem definido : defender o Aeroporto de Beja, como complemento ao de Lisboa, a chamada “solução Portela + 1”, de que se tem falado ultimamente. Essa defesa foi, nomeadamente, expressa num documento entregue ao primeiro-ministro.
Uma boa notícia, sem dúvida, quando essas entidades, representadas por pessoas com posições e interesses diferentes, se unem em torno de uma causa comum, a defesa de um equipamento que tão atacado e denegrido tem sido.
Este exemplo é, no entanto, uma excepção à regra que, infelizmente, tem vigorado quando se trata de lutar pelos direitos das populações do nosso território. É que são muitos os exemplos que exigiam a unidade e não a divisão, deixando de lado o acessório e privilegiando o essencial.
Basta olhar à nossa volta e deparamo-nos com uma espécie de “síndroma dos 50 (ou 60, ou 70)”: faltarão cerca de 50 km para nos ligarmos à A2, cerca de 60 de linha férrea electrificada, até Casa Branca, cerca de 70, para concluir a ligação ao Algarve, via IC 27, ou ainda os 60 da “esquecida” EN 260, até à fronteira de Ficalho. Estamos a falar, é claro, de ligações rodo/ferroviárias a partir de Beja, mas outros muitos outros exemplos existem, no distrito e na região, nessa e noutras áreas, que exigem essa unidade, sem complexos nem preconceitos, sobretudo os de natureza político-partidária.
Tal como o fizeram os seus colegas de Coimbra, Lousã e Miranda do Corvo, que se juntaram ao movimento cívico que reivindica o metro do Mondego, para substituir o desactivado ramal da Lousã, também seria muito bom vermos os autarcas de Beja, Cuba, Alvito, Viana do Alentejo, Vendas Novas, unidos, ao lado dos cidadãos que lutam pelas ligações directas a Lisboa, por comboio; ou os de Beja, Mértola, Alcoutim, Castro Marim e Vila Real, lutando por um IC 27, amputado há muitos anos e que tarda em avançar para além dos 40 km já construídos; ou ainda os de Beja, Ferreira, Grândola, Alcácer, Santiago e Sines, juntos pela A26, que tão tarde arrancou e que vai parando e avançando aos soluços.
É claro que estes são apenas alguns exemplos, que não são exclusivo dos actuais executivos municipais, mas que reflectem aquilo que atrás foi escrito: quando se trata de defender os interesses das populações, as cores partidárias devem ficar de lado, para que se fale a uma só voz, perante os poderes instalados na centralista e macrocéfala Lisboa (sejam eles de que partido forem).
Finalmente, tão importante como a acção intermunicipal, deve ser a actuação dos políticos locais e regionais (autarcas e deputados), perante esses poderes lisboetas. E aí, infelizmente, temos assistido a maus exemplos, protagonizados por eleitos que mudam de posição, consoante o seu partido está ou não no poder. Falamos, é claro, dos partidos do chamado “arco do poder”, PS e PSD e, nada melhor para ilustrar estas mudanças, do que a luta pela electrificação da linha férrea e pelo Intercidades Beja-Lisboa, e as posições tomadas ao longo dos meses por esses políticos.
Daria, certamente, para uma ou duas crónicas de jornal, mas, para exemplo, refiro apenas a errática (e oportunista) postura do actual presidente da câmara de Beja, bem documentada em vários suportes mediáticos – rádios, tvs, jornais, internet, etc.
Começou por aceitar e defender a proposta da CP, que previa a solução do transbordo em Casa Branca, induzindo em erro, mais tarde, a população de Beja, ao escrever no boletim municipal que iria haver cinco intercidades diários. Quando surgiu o movimento dos cidadãos (mais tarde, o Beja Merece), a sua primeira posição foi desvalorizá-lo (no dia 19 de Janeiro de 2011, em entrevista ao Jornal da Tarde da RTP), tratando esse assunto como algo de um qualquer “movimento”, em vez de lhe exprimir o seu apoio.
Esse “apoio”  (ou colagem) só chegou uma semana depois, quando os cidadãos de Beja se manifestaram pela primeira vez no largo da estação (o famoso “assalto à estação ferroviária”). Com cerca de 500 pessoas presentes, claro que o presidente da câmara não podia “perder o comboio” e deixar de aparecer na primeira linha da luta.
Finalmente, para terminar esta novela trágico-cómica, não faltou o recado paternalista, deixado numa entrevista a um jornal local (14 Outubro 2011), em jeito de reprimenda a um grupo de irresponsáveis que estavam a afastar os investidores, com a sua luta “contra o fim dos comboios” (coisa que só pela sua cabeça deve ter passado).
Para concluir, apetece apenas dizer: “apoios” desses, não obrigado.
8 Junho



Um dos cinco "intercidades"  a que JPV se referiu

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Nos 80 anos do Diário do Alentejo:Um conto juvenil ( "A Moda" - 23 Dezembro 1973)


Na minha infância e juventude, dois dos meus locais preferidos (entre outros), na aldeia onde nasci e onde vivia, eram a Biblioteca Itinerante nº 18, da Gulbenkian, que ali se deslocava uma vez por mês e a Casa do Povo, que ficava mesmo em frente à escola primária que frequentei durante três anos (o primeiro foi na escola da estação).

À biblioteca ia buscar os livros que o senhor Alberto (Veríssimo) me incentivava a levar (e eram alguns, todos os meses). À Casa do Povo ia ler as publicações que aí chegavam e, de entre todas, duas preferia: a revista semanal Flama e o Diário do Alentejo. Este último tem acompanhado toda a minha vida. Logo que pude, tornei-me seu assinante, o que acontece até hoje.
O Diário do Alentejo sempre se distinguiu da restante imprensa da chamada “província”. Antes do 25 de Abril fazia parte de um reduzido leque de jornais (como o Notícias da Amadora, o Jornal do Fundão ou o Comércio do Funchal), que ousava enfrentar a censura e a ditadura. Além disso, os seus conteúdos escapavam ao banal registo de casamentos, formaturas e outros eventos locais e, tal como ainda hoje, distinguia-se também por ser um projeto profissional, feito por profissionais.
Foi, por isso, muito por “culpa” do DA que ganhei o gosto (que ainda mantenho) pela leitura (e pela escrita).
Espicaçado por uma professora de Português, colaborei, durante dois anos no suplemento juvenil do jornal Época (que também chegava a Santa Vitória). Experiência que terminou no dia em que soube que esse jornal pertencia ao partido único, a Acção Nacional Popular, sucessor da União Nacional, de Salazar.
Estávamos em 1973, tinha quinze anos e começara a frequentar o 6º ano do Liceu de Beja. Um dia, em Outubro ou Novembro, entrei timidamente na redação do Diário do Alentejo, instalada na Praça da República, no mesmo prédio da livraria e da gráfica que o imprimia.
Lá estavam o José Moedas e o Manuel Sousa Tavares, de quem admirava os seus escritos. E o diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos jornais, da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no Diário do Alentejo algo da minha autoria.
Melo Garrido disse-me, então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a sua publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um conto com o título “A Moda”.
Como forma de homenagear os 80 anos do Diário do Alentejo e todos os profissionais que por ele têm passado, é esse conto que agora volto a publicar. Quase quarenta depois, à exceção da guerra colonial, que nele estava presente, mantém uma atualidade que a todos nos deve inquietar e interrogar.
A Moda
Depois de um copo e de uma palmada nas costas, começou a moda. Era o melhor alto da aldeia. Do Alentejo. Até já cantara na rádio. Com o grupo da Casa do Povo.
Nesse dia, houve feriado na aldeia. Todos quiseram ouvir cantar os da moda. Entre estes, Tóino, o melhor alto de Portugal.
O Tóino era um tipo com sorte…
Sorte malvada, dizia ele. Até já lhe morrera um moço na tropa e agora já lá estava outro.
Há anos, ouvindo falar nos que estavam além fronteira, viu-se na mesma situação que eles: um bom carro, um bom par de notas no banco e uma boa vida. Isto, diziam eles, os emigrantes, quando escreviam às mulheres. Os filhos brincavam na lama… Mas que importa isso?
“Tou-me lixando para isto” – disse o Tóino, um dia. Um homem é um homem. Iria para a França. Veriam, então, quem era ele.
Pediu emprestados os oitos contos para o gajo que os passaria. A ele e a mais três da aldeia. Partiram numa noite chuvosa.
“Não chores, mulher” – disse ele à partida – “Verás quem é rico daqui a uns meses”. Beijou os filhos e montou-se no automóvel.
Andou com água pelo pescoço. Viu as pontas das carabinas dos guardas. Mas chegou. São (?) e salvo (?)
De repente viu-se sozinho em Paris. O passador, logo que chegou à capital francesa, deixou-os à mercê da sorte.
Chorou. Como nunca antes o fizera. Nem no enterro do filho que morrera na tropa. Andou aos pontapés. Passou fome. Roubou.
Voltou meses depois. Sem “massa”. Dizendo “merci”, debaixo do qual escondia a miséria. Passou a embriagar-se todas as noites. Depois dava pancada na mulher, som o choro dos filhos.
Não queria trabalhar. Os ricos que o fizessem. Nele, já ninguém punha as mãos em cima.
Esteve na cadeia por roubo. Saiu um mês depois. Roto. Sujo.
Agora, canta a moda na taberna. Reles. Miserável.
Mas isso que interessa?
Não é ele o melhor alto do mundo?
1 Junho




Casa do Povo - onde conheci e comecei a gostar do Diário do Alentejo
( um jornal que é Património Cultural da Região )

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Bernardo e Beatriz.


Ao longo dos quase quinze anos em que trabalhei na área da Cultura da Câmara Municipal de Beja, e em particular nos últimos cinco e meio, na programação do Pax Julia, uma das coisas que mais me agradava era o contacto que tinha com os artistas (da música, do teatro, da dança) que aqui se deslocavam para apresentar os seus trabalhos.
Esse conhecimento, rico do ponto de vista pessoal e profissional, serviu também para comprovar algo que, não existindo apenas do sector das Artes, se aplica neste, de uma forma bem visível : com algumas excepções, é claro, os melhores distinguem-se dos outros, não só pelas suas qualidades artísticas, mas, sobretudo, pelas suas qualidades humanas. Em vez da distância, cultivam a simpatia e a proximidade, no lugar da arrogância, a simplicidade de quem sabe que é o talento que conquista o público e não essas posturas de pseudo vedetas.
Conheci, assim, o Bernardo (Sasseti) e a Beatriz (Batarda), artistas dos melhores nas suas áreas (música e teatro/cinema) e que, nas horas que partilhavam connosco no Teatro (nos ensaios e nos momentos de descompressão após os espectáculos), demonstravam as suas intrínsecas qualidades humanas.
A Beatriz esteve por duas vezes no Pax Julia. Na primeira, interpretou um monólogo – “De homem para homem” –, a 17 de Junho de 2009,  no 4º aniversário da reabertura desse espaço. Um texto forte, uma interpretação arrebatadora, de uma grande entrega, que deixou a todos, actriz e público, sem fôlego. Em Julho de 2010, não estando presente fisicamente, deixava essa sua marca, como encenadora da peça “Olá e Adeusinho”.
O Bernardo visitou-nos três vezes. A primeira em Maio de 2008, a solo, num espectáculo integrado no InJazz, festival descentralizado por várias localidades. A segunda, em Fevereiro de 2011, com o Trio a quem dava o nome, composto ainda por outros dois excelentes músicos, o Carlos Barreto e o Alexandre Frazão. Estes dois espectáculos tiveram em comum duas outras das paixões do Bernardo, a fotografia e o cinema, já que ambos incluíram fotos suas, incluídas em apresentação multimédia e em curtas metragens.
A terceira apresentação deu-se ainda não há uma ano, em Junho de 2011. Tal como na segunda, já eu não trabalhava no Pax Julia, ainda que tivesse programado ambas (a terceira foi mesmo o último espectáculo que programei).
Nesta última, o Bernardo compôs e interpretou as músicas que acompanharam as coreografias dos mais importantes nomes da dança nacional, como Olga Roriz, Rui Horta ou Paulo Ribeiro. Tratou-se de uma produção da Companhia Nacional de Bailado, com o título “Uma coisa em forma de assim”, onde foi possível assistir de novo ao seu grande virtuosismo, através de músicas criadas para estilos bem diferentes, para um, dois ou vários bailarinos. Ficou na memória de todos a que assistiram, o “diálogo” entre o pianista e dois bailarinos que, invadindo o seu espaço, fizeram do piano o seu palco, numa magnífica fusão de corpos e sons.
 Foi apenas quando esteve em Beja o Bernardo Sasseti Trio que soube que era casado com a Beatriz, já que esta e as duas filhas de ambos o acompanharam na sua deslocação à nossa cidade.
E foi também no final desse espectáculo, quando conversávamos sobre vários temas, desde a reacção dos espectadores, aos momentos menos bons que a Cultura já nessa altura atravessava, que o Bernardo disse algo que me (nos) deixou atónitos e satisfeitos: que gostava muito de actuar no Pax Julia, onde era sempre bem acolhido, pelos profissionais e pelo público, tendo este uma postura de atenção, respeito e afecto que lhe agradava, e que, graças a isso e às excelentes condições acústicas do espaço, talvez um dia viesse aqui gravar um disco a solo.
Não sei se, com tantos projectos em que estava sempre envolvido, o Bernardo se iria lembrar dessas palavras e se o tal disco não passaria apenas de mais um momento de entusiasmo tão próprio dele. Sei é que, numa sexta feira, à hora do almoço, a notícia chegou pela tv. Notícia cruel, bruta, estúpida: o Bernardo não gravaria mais, nem esse nem outros discos, não viria uma quarta vez ao Pax, não encantaria os bejenses com os acordes que saíam, qual passe de magia, das suas mãos únicas, a Beatriz e as filhas não o acompanhariam mais, alegrando os seus momentos, antes e após os espectáculos. O Bernardo partira.
Em memória do Bernardo.
Em solidariedade com a Beatriz.
18 Maio






Bernardo : http://www.youtube.com/watch?v=TG8eYgmUfp0
Beatriz : http://www.youtube.com/watch?v=q7swB5I0VRA

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Opções políticas.

O apagão analógico verificado no dia 26 de Abril permitiu, com a ligação à TDT, tirar algumas conclusões e retomar o visionamento dos canais espanhóis, dada a nossa proximidade geográfica a esse país.
A conclusão mais evidente é a apagada e vil tristeza da oferta nacional (os quatro canais de sinal aberto), comparada com a multiplicidade de canais dos nossos vizinhos (dez canais nacionais, um de notícias, vários temáticos – música, natureza, infantil – e, sobretudo, os regionais (Canal Sur e Canal Extremadura). Isto, no que respeita à televisão, já que depois existe uma variedade de canais de rádio também apreciável.
A segunda conclusão que se retira, é o importante serviço público prestado pelos canais regionais, que são fruto, em grande medida da autonomia política que aqui ao lado se verifica. Do Canal Sur (que tem no ar três canais), não falemos, dada a dimensão da grande Andaluzia, com os seus mais de oito milhões de habitantes e a sua importante rede urbana, que a colocam como uma das mais importantes regiões de Espanha.
Falemos, sim, do Canal Extremadura, porta-voz para o mundo de uma pequena, pobre e ultraperiférica região há uns anos e que, graças precisamente à autonomia, obtida em 1983, deixou esse estatuto, para se transformar num território de progresso, respeitado dentro e fora das fronteiras de Espanha.
Para além do entretenimento próprio da televisão, esse canal aproxima e une os extremenhos, com os seus programas sobre a região, que vão das touradas ao desporto (transmitem-se jogos dos clubes regionais, das 3ª e 2ª divisões), passando pelo património natural e cultural e pelas notícias (da política, da sociedade, dos mais pequenos burgos às suas cidades).
E foi num desse programas de notícias que, no passado domingo, fiquei impressionado com a beleza exterior e a brancura e luminosidade interiores do Parlamento dessa região, sedeado em Mérida, no antigo Hospital de São João de Deus (o hospital dos pobres), construído no século XVIII e recuperado para acolher essa instituição política.
Falava-se da inauguração da exposição de um importante escultor emeritense e das obras de arte que ocupam os espaços desse edifício, tornando-o num verdadeiro museu de arte. É prática corrente a realização de exposições no Parlamento da Extremadura, bem como a aquisição e/ou doação de obras dos artistas convidados.
Depois de ver e ouvir essa reportagem, não deixei de pensar no estado de abandono e desleixo em que se encontram alguns dos edifícios mais significativos da nossa cidade, comparando-os com a dignidade desse e de outros aqui bem perto: há uns anos, numas férias de verão, desloquei-me propositadamente a Málaga, para ver o Museu Picasso que, não tendo a dimensão nem o espólio dos seus congéneres de Paris ou de Barcelona, se situa num edifício do século XVI, alvo de uma recuperação exemplar, já premiada internacionalmente.
Falo no edifício do Governo Civil, com as suas deficientes condições, quer para os utentes dos vários serviços que aí se concentram, quer para os trabalhadores desses serviços; falo do Museu Regional e do lamentável estado a que vai chegando, fruto de posturas e decisões que têm condenado à degradação esse magnífico edifício e o seu recheio; falo, finalmente (e numa escala menor, é claro), da imagem de abandono do exterior da Biblioteca Municipal, onde o branco das suas paredes há muito se transformou em cinzento, nada compatível com o excelente trabalho que os seus funcionários aí continuam a desenvolver.
São situações diferentes, mas que contrastam com os exemplos de que falei e com muitos outros. Fruto, como dizia Carreira Marques, numa entrevista na semana passada, sobre o estado do Museu, de opções políticas, que colocam em causa um entendimento entre os municípios, com cerca de trinta anos, que atribui ao Município de Beja o pagamento de 60% dos seus custos de funcionamento (reduzido, em 2012, para 48%).
Outras fossem as opções e os milhares de euros gastos em 2011 em eventos efémeros de alguns dias (Beja Wine Night ou Beja Brava, por exemplo) poderiam ser canalizados para a Assembleia Distrital, não se atingindo, nesse ano, a dívida de 95 mil euros e não deixando chegar esse importante equipamento cultural regional e nacional ao estado a que chegou.
Afinal, a Lei dos Compromissos é bem recente e não pode servir de desculpa para tudo. 

 11 Maio  



Beja - Museu Regional
Mérida - Parlamento da Extremadura

sábado, 5 de maio de 2012

Histórias de Abril (5) Aquela triste (e não leda) madrugada.


Santa Vitória, Novembro de 1975. Tinha sido um ano e meio frenético, depois de quarenta e oito de quietude opressora. Nesse curto período de tempo de um país tão antigo, a história fez-se a uma velocidade estonteante, que contrastou com a letargia em que o salazarismo propositadamente mergulhara os portugueses.
Dezanove meses durou o PREC, período vivido por muitos com paixão e esperança e referido por outros de uma forma acintosa. Esperança que chegou ao outro lado do oceano e que levou o Chico a cantar “Eu queria estar na festa, pá”. Mas, lá como cá, ditadura era ditadura e a canção foi censurada.
A revolução que dos cravos foi chamada, teve também, ao longo desses meses, cenas de violência, que fizeram mártires, como o padre Max, cujo lema de vida era “servir o povo e nunca se servir dele”. E foi palco, principalmente, de outros episódios, como o “28 de Setembro” ou o “11 de Março”, que ficaram na memória como tentativas de interromper a revolução em curso.
E, se o primeiro não passou de uma golpe palaciano, em nome de uma tal “maioria silenciosa”, que terminou com a substituição de Spínola por Costa Gomes, como presidente da república, o segundo já foi mais violento, dado que incluiu o bombardeamento aéreo de um quartel (o RALIS) e a morte de um soldado e ferimentos em outros. Foi a derradeira tentativa dos chamados “spinolistas”, que resultou numa viragem à esquerda, com a formação do Conselho da Revolução e a nacionalização de bancos e seguros.
Entre Março e Novembro acentuam-se, entretanto, as divergências entre os próprios “vencedores” deste último golpe, divisões profundas que se abrem, que criam feridas jamais cicatrizadas, entre partidos políticos e, sobretudo, entre militares que estavam do mesmo lado no 25 de Abril e que agora estão dos dois lados da barricada.
Vivem-se momentos históricos, como, por exemplo, a manifestação do dia 16 de Novembro, que encheu o Terreiro do Paço, onde, soldados e povo, lado a lado, gritam a sua fidelidade à revolução socialista, que seria irreversível em Portugal. Essa mesma revolução que trazia ao nosso país revolucionários de toda a Europa, para verem com os seus próprios olhos, como era possível, neste cantinho à beira mar plantado, semear e colher todos os seus sonhos mais lindos, de uma sociedade mais justa e igualitária.
Em Setembro e em Março, como em todo o país, também nas nossas aldeias foram feitas barricadas, para evitar a passagem dos contra revolucionários, parando e revistando carros, num misto de vigilância, mas também de festa, onde se confraternizava à volta de uma bebida e de um petisco. Onde se misturava a alegria e o sentimento de dever cumprido, a lutar por uma causa justa.
Nesse dia de Novembro, as coisas não correram da mesma maneira. Porque uma imagem da televisão teve um simbolismo e transmitiu uma mensagem que iria marcar todos os que se juntaram na Casa do Povo de Santa Vitória para, mais uma vez, defender a sua revolução. No écran, onde um dos “nossos”, Duran Clemente, capitão de Abril, estava a falar, surge, em seu lugar, uma comédia do Danny Kaye. Nesse momento, de angústia e de revolta, ninguém sabia que a emissão passara de Lisboa para o Porto.
Nessa noite e madrugada, a dúvida instalou-se: que se passara, quem iniciara as hostilidades, a esquerda ou a direita? Como estava a evoluir a situação, quem iria sair vencedor? Perguntas que nunca obtiveram resposta, ficando em todos um sentimento de orfandade e de abandono à sua sorte. Todos os que ali estavam, para defender a sua revolução, recolhiam a suas casas sem saber o dia seguinte, longe da euforia de Setembro e de Março. O próprio Chico cantava agora “Foi bonita a festa, pá”.
Afinal, como muitos chegaram a vaticinar, essa noite não foi o “fim da História”, que um tal Fukuyama anos mais tarde (erradamente) anunciou. É claro que, a partir dessa data, com a “normalização” democrática, abrandou significativamente a velocidade que marcou esses dezanove meses, mas foi possível levar à prática muito por que se lutava então : democratizar o acesso à Educação e à Saúde, melhorar as condições de vida e de trabalho, promover a Cultura dos cidadãos, etc.
Nesse dia de Novembro, perderam-se, certamente, muitas ilusões, mas ficaram os ideais, que perduram para além dos contratempos da História. Porque, como diz o “alentejano” José Mattoso, “…os ideais propõem-nos um horizonte que nunca conseguiremos alcançar: o ideal da pureza, da beleza, da abnegação – nunca lá chegaremos suficientemente…” (Público, 29 de Abril)
(Esta última “História de Abril” é dedicada à memória de Miguel Portas)

4 de Maio



Duran Clemente : a última imagem






sexta-feira, 27 de abril de 2012

Histórias de Abril (4) A cadeira que protege o general.

Beja, Junho de 1976. Aquele podia ter sido um domingo igual a tantos outros, para os quatro amigos que tinham vindo à cidade ver o futebol : no fim do jogo do Desportivo, no Flávio Santos, passariam pela Girafa, onde beberiam umas imperiais, antes de regressarem à sua aldeia.
Só que, nesse dia, estava marcado um comício de Ramalho Eanes, candidato a ser o primeiro Presidente da República eleito após a conquista da democracia, dois anos antes. Numa época em que a política era vivida com muita paixão, a curiosidade levaria os quatro amigos de Santa Vitória a regressar à sua terra umas horas mais tarde. Pelo sim, pelo não, deixaram o carro junto ao liceu, a uma distância considerável do local do comício, não fosse a coisa dar (como deu) para o torto.
Ao passarem pelas Portas de Mértola, encontram um conhecido, militante do PCP, que lhes diz que, por indicação do partido, e para que não houvesse problemas com os seus militantes, estes tinham sido “aconselhados” a ir para o centro de trabalho na Rua Ancha. Desse modo, estaria também defendido de eventuais ataques que poderiam acontecer numa tarde que se previa atribulada.
O local do comício era, logo à partida, propício a confrontos, já que o palco se encontrava no Largo dos Duques, onde se concentravam os apoiantes de Eanes, enquanto que num local superior, junto ao Largo do Museu se encontravam os contestatários. Estes eram, na sua maioria, apoiantes da candidatura de Otelo, enquanto que, entre os apoiantes de Eanes  se encontravam militantes e simpatizantes do CDS ao MRPP e à AOC, passando pelo PS e PSD (numa panóplia de ideologias bem estranha).
Os confrontos começaram por ser apenas verbais, até que, de um lado e de outro começam a voar pedras, que ameaçavam a integridade física dos presentes e até realização do comício. O próprio Eanes, numa calma verdadeiramente olímpica, segura na cadeira onde estava sentado e, para se proteger, coloca-a sobre a cabeça, numa posição muito pouco ortodoxa.
Entre palavras de ordem, insultos e pedradas, eis que, de repente, se ouve aquilo que parece ser um tiro, vindo não se sabe bem de onde e muito menos disparado por quem. Só que, na sequência desse som, surgem (talvez do Largo de Santa Maria), dezenas de polícias, equipados com capacetes, escudos e bastões que desatam a subir a rua, dispersando, quer os opositores do comício, quer os simples mirones. Todos se espalham por tudo quanto é sítio, procurando fugir a umas dolorosas bastonadas: Rua dos Infantes, Rua do Touro, Rua Conde da Boavista, Largo de São João.
No meio desta confusão encontravam-se os quatro amigos que, não estando em nenhum dos campos em confronto, já que apenas estavam lá para assistir aos acontecimentos, também se viram obrigados a correr à frente da polícia. Quis o destino que, ao passarem em frente às portas do Cine-Teatro Pax Júlia (onde estava a decorrer a sessão da tarde do cinema), um deles ter sido reconhecido pelo porteiro (na altura, contínuo no Liceu de Beja) que se encontrava no interior. Num gesto que deve ter misturado a solidariedade e a pena, abriu as portas, por onde se precipitaram os quatro, mais alguns dos que fugiam à polícia. Salvos pela Cultura, podemos, sem quaisquer dúvidas, salientar.
Só após um longo período de tempo (entretanto acabara a matiné), é que conseguiram sair do Pax Julia e voltar para a sua aldeia. Desta história, felizmente sem vítimas mortais (como acontecera em Abril desse ano, em Beja, e também nessa mesma campanha eleitoral, em Évora), ficam também os processos judiciais abertos a 14 dos contestatários, os quais viriam a ser absolvidos apenas em 1981.
E um general de poucas falas e menos sorrisos, que os portugueses conheceram apenas no dia 25 de Novembro de 1975 e que viriam a eleger como seu Presidente por duas vezes, exercendo a máxima magistratura política entre 1976 e 1986.
27 de Abril



Eleições 1976

Eleições 1976 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Histórias de Abril (3) Oficial e cavaleiro.

Santa Vitória, Outubro de 1975. No quintal da Casa do Povo é instalado um palco provisório, onde se instalam os convidados daquele momento histórico : a formação da primeira UCP – Unidade Colectiva de Produção –que adoptara um sugestivo nome, Vanguarda do Alentejo.
A história começara um ano atrás, no Monte do Outeiro, quando o seu proprietário, além de não aceitar os trabalhadores que tinham sido colocados pela comissão formada por representantes do sindicato, dos agricultores (ALA) e do governo, despedira a maioria dos que aí laboravam, alguns já de idade avançada e com muitos anos de trabalho (e de fidelidade) nessa herdade.
Essa colocação de trabalhadores que acontecia um pouco por todo o Alentejo, visava, por um lado, diminuir o elevado desemprego que se verificava e, por outro, rentabilizar as herdades que tinham vastas parcelas subaproveitadas. O que era o caso do Monte do Outeiro, onde uma parte das suas centenas de hectares estava por cultivar, servindo, principalmente para caçadas onde era figura assídua o então Presidente da República, Américo Tomás. E onde os habitantes locais não podiam sequer entrar, perseguindo alguma perdiz, pois que se arriscavam a ser penalizados pela justiça.
A Vanguarda do Alentejo, que nesse dia 17 de Outubro era constituída, para além do Outeiro, por diversas outras herdades da freguesia, que tinham entretanto sido ocupadas pelos trabalhadores, com o apoio dos militares e do governo de então. Por isso, lá estava a representar o poder político, o Major Brissos de Carvalho, governador civil, bem como outras entidades civis e militares. Entre elas, um representante da GNR, oficial garboso e orgulhoso da farda que vestia, ao serviço do jovem estado democrático.
Passada aquela cerimónia, de aparente unidade entre os presentes, começam a surgir divergências entre os trabalhadores, fruto de dois conceitos diferentes do que deveria ser a Reforma Agrária : de um lado, os defensores da UCP, que preconizavam a existência de uma única estrutura produtiva, onde estivessem integradas todas as terras ocupadas (apoiados pelo PCP) e, do outro, os que defendiam a existência de cooperativas autónomas, formadas a partir de cada uma das herdades que compunham as UCP (apoiados pelo PS).
Assiste-se, então, à tentativa de separação de algumas dessas herdades – Carriços, Corte Ripais, Chaminé, entre outras, num processo conflituoso e traumático entre os próprios trabalhadores e que divide a comunidade local.
Setembro de 1976 – Monte da Chaminé do Passarinho. Algumas centenas de trabalhadores da Vanguarda do Alentejo, suas famílias e outros habitantes locais, estão concentrados, para evitar a desanexação da propriedade e a formação de uma cooperativa independente. Viviam-se os primeiros tempos do primeiro governo constitucional, após os diversos governos provisórios. O primeiro-ministro é Mário Soares, vencedor das primeiras eleições legislativas e o ministro da agricultura é Lopes Cardoso, que aprova essa desanexação.
Para cumprir as ordens governamentais e desalojar os contestatários, uma força da GNR, num aparato bélico impressionante : guardas a cavalo e em jipes, carros blindados e até ambulâncias. Na estrada nacional, os veículos que aí passavam não podem parar ou sequer diminuir a velocidade.
A comandar essa força estava o mesmo oficial que assistira à formação da UCP, um ano antes. Desta vez, assumindo o papel de cavaleiro orgulhoso da sua farda, levanta a voz para os manifestantes, dando-lhes cinco minutos para dispersar, sob a ameaça de “levar tudo à sua frente”.
Gritos, choros, revolta, medo, resistência, de tudo um pouco se assiste. Valem a clarividência e o bom senso dos dirigentes da UCP que, vencidos mas não convencidos, apelam à retirada. Para que não houvesse vítimas, para que não surgissem novas Catarinas no Alentejo.
Três anos depois, em Setembro de 1979, em Santiago do Escoural, Caravela e Casquinha, 65 e 17 anos, serão as vítimas que então se evitam, os mártires dessa época de sonhos e de utopias.
20 Abril




(Foto do Blogue Alvitrando)



                             

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Histórias de Abril (2) A professora rebelde.

Memórias dos dias de sonhos e esperança 

                                              Sala 13

Liceu de Beja, Abril de 1974. Mais um simples dia de aulas, ou talvez não? As notícias na rádio, a agitação entre as pessoas, rapidamente confirmam que esse não será um dia qualquer.  Como ninguém, Sophia,
poeta maior, o cantaria: “O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio”.
Ironicamente, estava marcado para esse dia um teste da “disciplina oficial” : OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação). De nada serviu a insistência com a professora M. , para que não realizasse o teste, sobre um regime que estava a cair na rua, com um dos seus principais chefes cercado num quartel  de Lisboa, pelo povo e pelas tropas de um tal capitão Salgueiro Maia.
Jovem ainda, receosa por eventuais represálias, cumpridora dos seus deveres, a professora lá conseguiu convencer a turma a fazer o teste, ainda que de uma forma bastante menos formal que o habitual. Como se costuma dizer, apenas para “cumprir calendário”.
No dia seguinte, todos estavam à espera da aula da professora H.  Igualmente jovem, recém chegada da faculdade, era uma autêntica lufada de ar fresco, numa escola conservadora  que, à imagem e semelhança das suas congéneres,  procurava incutir nos estudantes as virtudes de um Estado que se dizia Novo, mas que estava tão caduco como as folhas que ciclicamente caem no Outono.
A professora H. ensinava Sócrates, Aristóteles e Platão, o idealismo, o positivismo e o existencialismo. Mas não  esquecia o marxismo e a luta de classes, nem deixava de incentivar os seus alunos a ler “As mãos sujas”, de Sartre, ou “Os Justos”, de Camus. Tal como, mais tarde, levaria um grupo a Lisboa, a ver teatro, na cave de uma cervejaria famosa, onde actuava uma companhia com um nome bem elucidativo : Comuna.
Certo dia, um grupo dos seus alunos, que, timidamente e com os cuidados naturais para a época, começava a ler uns livros proibidos (que sabiam existir, escondidos, na livraria Carlos Marques, junto à redacção e às oficinas do Diário do Alentejo), a discutir temas como a independência da Guiné-Bissau, quis fazer-lhe uma “provocação”, colocando à sua vista, um livro que o irmão de desses alunos, estudante universitário em Lisboa, lhes emprestara : “A História me absolverá”, de Fidel Castro. No final da aula, a professora H. chamou à parte esses alunos e explicou-lhes a imprudência que era andarem com esse livro assim à vista, e que havia uns senhores, espalhados por todo o lado, cuja missão era descobrir quem lia livros desse tipo.
Pois bem, nesse dia segundo da Liberdade, a aula com a professora H. era na sala 13, de cujas janelas se avistava o campo de futebol e, junto a este, a Avenida Vasco da Gama. Cedo começou a haver um grande alvoroço junto a uma vivenda dessa avenida, onde se concentrava uma multidão cada vez maior, contida a custo por jovens militares.
Só nessa altura, ao ouvirem os gritos de “morte à pide” é que esses alunos “do contra” souberam que era ali que “trabalhavam” os tais senhores de que a sua professora lhes falara. O impulso para se juntarem à multidão foi enorme, exigir o castigo desses esbirros, que vigiavam, prendiam, torturavam a matavam os opositores da ditadura.
É então que ouvem, surpresos, da professora H. , algo que os deixa incrédulos : aqueles que ali estavam e que subiam presos para as viaturas militares, não eram os principais culpados do que acontecera em Portugal. Esses já cá não estavam, tinham ido para a Madeira.  Por isso (e para que não acontecesse nada de mal), não havia razão para irem para a rua gritar contra a PIDE (na altura a DGS).
Após alguns momentos de diálogo e de argumentos (e súplicas), a professora H. lá deixou o grupo dos seus alunos juntar-se aos bejenses que gritavam a sua repulsa à repressão e a sua adesão à democracia.
Um mês depois souberam que os tais responsáveis tinham ido da Madeira para o Brasil. Um ano depois, a 30 de Junho, dá-se  a “fuga” de 88 antigos agentes da PIDE, transformada pelas palavras de Ary dos Santos e pela música de Fernando Tordo no “Fado de Alcoentre”.
13 de Abril

Perceber a História


No passado dia 21 de fevereiro faleceu em Beja D. Manuel Falcão, que aqui chegou em Janeiro de 1975, num período da nossa História (nacional e regional) bastante atribulado, após a reconquista da liberdade e da democracia, com o 25 de Abril.
Com uma postura simples, uma grande humildade e um humanismo cristão próprios de um pastor que desempenhava as suas funções para servir o próximo, D. Manuel foi, muitas vezes, apelidado de “Bispo Vermelho”, tal como sucedeu com outro bispo, também ele Manuel (felizmente ainda vivo), que dirigiu a Diocese de Setúbal entre 1975 e 1998. Esta designação, se em alguns casos não tinha uma conotação negativa, reconhecendo antes o papel desses clérigos junto dos mais desprotegidos das populações em que estavam inseridos, foi igualmente utilizada em tom depreciativo, com uma conotação político-partidária que pretendia denegrir a sua importante actividade pastoral.
Ora, quer D. Manuel Martins, quer D. Manuel Falcão, mais não fizeram do que perceber a História dos territórios que administravam : o primeiro, ao denunciar a situação de milhares de operários do distrito de Setúbal, nos anos 80 do século passado, colocados em situações de miséria e de pobreza, por uma grave crise económica e social, para a qual não tinham contribuído; o segundo, ao verificar que o afastamento dos alentejanos em relação à Igreja Católica, tinha razões que vinham de tempos antigos, e que esse distanciamento não significava ausência de religiosidade, bem presente nas suas vidas.
D. Manuel Falcão encontrou um povo que, durante décadas, passou fome, foi explorado e humilhado, a coberto de uma aliança entre uma ditadura, apoiada numa força repressiva (a GNR) e os grandes proprietários fundiários, perante uma Igreja conformista, quando não mesmo colaboracionista (com excepções, é claro).
Por isso, mais do que uma luta política ou ideológica, o que o Bispo de Beja viu nesses camponeses que se entregaram a uma Reforma Agrária onde depositaram todas as suas esperanças numa vida melhor, foi um conjunto de homens e mulheres que, para além do material, aspiravam sobretudo à dignidade e à cidadania, que não lhes era reconhecida durante as décadas de opressão. E foi junto a estes homens e mulheres, com quem se identificou, que desenvolveu a sua acção evangelizadora, promoveu uma obra obra social assinalável, prestigiando assim a Igreja a quem dedicou a sua vida.
Curiosa é também a atitude de espanto daqueles que referem o seu diálogo com os presidentes de câmara comunistas (durante muitos anos, a maioria no território abrangido pela Diocese que D.Manuel dirigia). É que, mais uma vez, o Bispo de Beja percebeu que os autarcas alentejanos (e não apenas os comunistas) estavam a realizar um trabalho que visava, acima de tudo, tirar do atraso as aldeias e lugares da região, dando aos seus habitantes condições de vida dignas, em acções como a electrificação, o abastecimento de água ao domicílio ou o saneamento básico. Como não dialogar, então, com quem trabalhava em prol de todos, católicos ou não, que viam, finalmente, chegar às suas casas e às suas terras, o progresso e o bem-estar a que também tinham direito?
Duas notas finais. A primeira para destacar uma outra faceta de D.Manuel Falcão, ao perceber o importante e inigualável património religioso da Diocese, criando os meios para a sua preservação e promoção, aquém e além fronteiras, através de um departamento específico, dirigido pelo Arquitecto José António Falcão, com um trabalho único no País. As várias exposições realizadas, os museus de arte sacra criados e o Festival Terras sem Sombras são marcas de uma actividade que dignifica e prestigia a Igreja e o Alentejo.
A segunda nota, para sublinhar o facto de, passados quase 40 anos da chegada de D.Manuel Falcão ao Alentejo, a situação é, felizmente, bem diferente daquela que ele bem percebeu : hoje vive-se em democracia, a GNR é uma força militarizada ao serviço do regime democrático, enquadrada por leis aprovadas pela Assembleia da República, existe uma nova geração de agricultores, com uma mentalidade diferente das que a precederam e há uma nova atitude da própria Igreja, que desenvolve um importante papel pastoral, social e cultural, em que vários dos seus membros se destacam, a nível regional e até nacional.
Onde se integra, obviamente, o sucessor de D.Manuel, o bispo D.António Vitalino, homem do nosso tempo, adepto das novas tecnologias, que reconhece a importância da comunicação social, onde colabora com regularidade, e que não hesita em denunciar o absurdo consumismo da época natalícia ou  a “escravatura humana” de alguns emigrantes que trabalham nos campos do Alentejo (ele próprio é Presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana).
13 de Abril