Memórias dos dias de sonhos e esperança
Sala 13
Liceu de Beja, Abril de 1974. Mais um simples dia de aulas, ou talvez não? As notícias na rádio, a agitação entre as pessoas, rapidamente confirmam que esse não será um dia qualquer. Como ninguém, Sophia,
poeta maior, o cantaria: “O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio”.
Ironicamente, estava marcado para esse dia um teste da “disciplina oficial” : OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação). De nada serviu a insistência com a professora M. , para que não realizasse o teste, sobre um regime que estava a cair na rua, com um dos seus principais chefes cercado num quartel de Lisboa, pelo povo e pelas tropas de um tal capitão Salgueiro Maia.
Jovem ainda, receosa por eventuais represálias, cumpridora dos seus deveres, a professora lá conseguiu convencer a turma a fazer o teste, ainda que de uma forma bastante menos formal que o habitual. Como se costuma dizer, apenas para “cumprir calendário”.
No dia seguinte, todos estavam à espera da aula da professora H. Igualmente jovem, recém chegada da faculdade, era uma autêntica lufada de ar fresco, numa escola conservadora que, à imagem e semelhança das suas congéneres, procurava incutir nos estudantes as virtudes de um Estado que se dizia Novo, mas que estava tão caduco como as folhas que ciclicamente caem no Outono.
A professora H. ensinava Sócrates, Aristóteles e Platão, o idealismo, o positivismo e o existencialismo. Mas não esquecia o marxismo e a luta de classes, nem deixava de incentivar os seus alunos a ler “As mãos sujas”, de Sartre, ou “Os Justos”, de Camus. Tal como, mais tarde, levaria um grupo a Lisboa, a ver teatro, na cave de uma cervejaria famosa, onde actuava uma companhia com um nome bem elucidativo : Comuna.
Certo dia, um grupo dos seus alunos, que, timidamente e com os cuidados naturais para a época, começava a ler uns livros proibidos (que sabiam existir, escondidos, na livraria Carlos Marques, junto à redacção e às oficinas do Diário do Alentejo), a discutir temas como a independência da Guiné-Bissau, quis fazer-lhe uma “provocação”, colocando à sua vista, um livro que o irmão de desses alunos, estudante universitário em Lisboa, lhes emprestara : “A História me absolverá”, de Fidel Castro. No final da aula, a professora H. chamou à parte esses alunos e explicou-lhes a imprudência que era andarem com esse livro assim à vista, e que havia uns senhores, espalhados por todo o lado, cuja missão era descobrir quem lia livros desse tipo.
Pois bem, nesse dia segundo da Liberdade, a aula com a professora H. era na sala 13, de cujas janelas se avistava o campo de futebol e, junto a este, a Avenida Vasco da Gama. Cedo começou a haver um grande alvoroço junto a uma vivenda dessa avenida, onde se concentrava uma multidão cada vez maior, contida a custo por jovens militares.
Só nessa altura, ao ouvirem os gritos de “morte à pide” é que esses alunos “do contra” souberam que era ali que “trabalhavam” os tais senhores de que a sua professora lhes falara. O impulso para se juntarem à multidão foi enorme, exigir o castigo desses esbirros, que vigiavam, prendiam, torturavam a matavam os opositores da ditadura.
É então que ouvem, surpresos, da professora H. , algo que os deixa incrédulos : aqueles que ali estavam e que subiam presos para as viaturas militares, não eram os principais culpados do que acontecera em Portugal. Esses já cá não estavam, tinham ido para a Madeira. Por isso (e para que não acontecesse nada de mal), não havia razão para irem para a rua gritar contra a PIDE (na altura a DGS).
Após alguns momentos de diálogo e de argumentos (e súplicas), a professora H. lá deixou o grupo dos seus alunos juntar-se aos bejenses que gritavam a sua repulsa à repressão e a sua adesão à democracia.
Um mês depois souberam que os tais responsáveis tinham ido da Madeira para o Brasil. Um ano depois, a 30 de Junho, dá-se a “fuga” de 88 antigos agentes da PIDE, transformada pelas palavras de Ary dos Santos e pela música de Fernando Tordo no “Fado de Alcoentre”.
13 de Abril |
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