Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Bernardo e Beatriz.


Ao longo dos quase quinze anos em que trabalhei na área da Cultura da Câmara Municipal de Beja, e em particular nos últimos cinco e meio, na programação do Pax Julia, uma das coisas que mais me agradava era o contacto que tinha com os artistas (da música, do teatro, da dança) que aqui se deslocavam para apresentar os seus trabalhos.
Esse conhecimento, rico do ponto de vista pessoal e profissional, serviu também para comprovar algo que, não existindo apenas do sector das Artes, se aplica neste, de uma forma bem visível : com algumas excepções, é claro, os melhores distinguem-se dos outros, não só pelas suas qualidades artísticas, mas, sobretudo, pelas suas qualidades humanas. Em vez da distância, cultivam a simpatia e a proximidade, no lugar da arrogância, a simplicidade de quem sabe que é o talento que conquista o público e não essas posturas de pseudo vedetas.
Conheci, assim, o Bernardo (Sasseti) e a Beatriz (Batarda), artistas dos melhores nas suas áreas (música e teatro/cinema) e que, nas horas que partilhavam connosco no Teatro (nos ensaios e nos momentos de descompressão após os espectáculos), demonstravam as suas intrínsecas qualidades humanas.
A Beatriz esteve por duas vezes no Pax Julia. Na primeira, interpretou um monólogo – “De homem para homem” –, a 17 de Junho de 2009,  no 4º aniversário da reabertura desse espaço. Um texto forte, uma interpretação arrebatadora, de uma grande entrega, que deixou a todos, actriz e público, sem fôlego. Em Julho de 2010, não estando presente fisicamente, deixava essa sua marca, como encenadora da peça “Olá e Adeusinho”.
O Bernardo visitou-nos três vezes. A primeira em Maio de 2008, a solo, num espectáculo integrado no InJazz, festival descentralizado por várias localidades. A segunda, em Fevereiro de 2011, com o Trio a quem dava o nome, composto ainda por outros dois excelentes músicos, o Carlos Barreto e o Alexandre Frazão. Estes dois espectáculos tiveram em comum duas outras das paixões do Bernardo, a fotografia e o cinema, já que ambos incluíram fotos suas, incluídas em apresentação multimédia e em curtas metragens.
A terceira apresentação deu-se ainda não há uma ano, em Junho de 2011. Tal como na segunda, já eu não trabalhava no Pax Julia, ainda que tivesse programado ambas (a terceira foi mesmo o último espectáculo que programei).
Nesta última, o Bernardo compôs e interpretou as músicas que acompanharam as coreografias dos mais importantes nomes da dança nacional, como Olga Roriz, Rui Horta ou Paulo Ribeiro. Tratou-se de uma produção da Companhia Nacional de Bailado, com o título “Uma coisa em forma de assim”, onde foi possível assistir de novo ao seu grande virtuosismo, através de músicas criadas para estilos bem diferentes, para um, dois ou vários bailarinos. Ficou na memória de todos a que assistiram, o “diálogo” entre o pianista e dois bailarinos que, invadindo o seu espaço, fizeram do piano o seu palco, numa magnífica fusão de corpos e sons.
 Foi apenas quando esteve em Beja o Bernardo Sasseti Trio que soube que era casado com a Beatriz, já que esta e as duas filhas de ambos o acompanharam na sua deslocação à nossa cidade.
E foi também no final desse espectáculo, quando conversávamos sobre vários temas, desde a reacção dos espectadores, aos momentos menos bons que a Cultura já nessa altura atravessava, que o Bernardo disse algo que me (nos) deixou atónitos e satisfeitos: que gostava muito de actuar no Pax Julia, onde era sempre bem acolhido, pelos profissionais e pelo público, tendo este uma postura de atenção, respeito e afecto que lhe agradava, e que, graças a isso e às excelentes condições acústicas do espaço, talvez um dia viesse aqui gravar um disco a solo.
Não sei se, com tantos projectos em que estava sempre envolvido, o Bernardo se iria lembrar dessas palavras e se o tal disco não passaria apenas de mais um momento de entusiasmo tão próprio dele. Sei é que, numa sexta feira, à hora do almoço, a notícia chegou pela tv. Notícia cruel, bruta, estúpida: o Bernardo não gravaria mais, nem esse nem outros discos, não viria uma quarta vez ao Pax, não encantaria os bejenses com os acordes que saíam, qual passe de magia, das suas mãos únicas, a Beatriz e as filhas não o acompanhariam mais, alegrando os seus momentos, antes e após os espectáculos. O Bernardo partira.
Em memória do Bernardo.
Em solidariedade com a Beatriz.
18 Maio






Bernardo : http://www.youtube.com/watch?v=TG8eYgmUfp0
Beatriz : http://www.youtube.com/watch?v=q7swB5I0VRA

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Opções políticas.

O apagão analógico verificado no dia 26 de Abril permitiu, com a ligação à TDT, tirar algumas conclusões e retomar o visionamento dos canais espanhóis, dada a nossa proximidade geográfica a esse país.
A conclusão mais evidente é a apagada e vil tristeza da oferta nacional (os quatro canais de sinal aberto), comparada com a multiplicidade de canais dos nossos vizinhos (dez canais nacionais, um de notícias, vários temáticos – música, natureza, infantil – e, sobretudo, os regionais (Canal Sur e Canal Extremadura). Isto, no que respeita à televisão, já que depois existe uma variedade de canais de rádio também apreciável.
A segunda conclusão que se retira, é o importante serviço público prestado pelos canais regionais, que são fruto, em grande medida da autonomia política que aqui ao lado se verifica. Do Canal Sur (que tem no ar três canais), não falemos, dada a dimensão da grande Andaluzia, com os seus mais de oito milhões de habitantes e a sua importante rede urbana, que a colocam como uma das mais importantes regiões de Espanha.
Falemos, sim, do Canal Extremadura, porta-voz para o mundo de uma pequena, pobre e ultraperiférica região há uns anos e que, graças precisamente à autonomia, obtida em 1983, deixou esse estatuto, para se transformar num território de progresso, respeitado dentro e fora das fronteiras de Espanha.
Para além do entretenimento próprio da televisão, esse canal aproxima e une os extremenhos, com os seus programas sobre a região, que vão das touradas ao desporto (transmitem-se jogos dos clubes regionais, das 3ª e 2ª divisões), passando pelo património natural e cultural e pelas notícias (da política, da sociedade, dos mais pequenos burgos às suas cidades).
E foi num desse programas de notícias que, no passado domingo, fiquei impressionado com a beleza exterior e a brancura e luminosidade interiores do Parlamento dessa região, sedeado em Mérida, no antigo Hospital de São João de Deus (o hospital dos pobres), construído no século XVIII e recuperado para acolher essa instituição política.
Falava-se da inauguração da exposição de um importante escultor emeritense e das obras de arte que ocupam os espaços desse edifício, tornando-o num verdadeiro museu de arte. É prática corrente a realização de exposições no Parlamento da Extremadura, bem como a aquisição e/ou doação de obras dos artistas convidados.
Depois de ver e ouvir essa reportagem, não deixei de pensar no estado de abandono e desleixo em que se encontram alguns dos edifícios mais significativos da nossa cidade, comparando-os com a dignidade desse e de outros aqui bem perto: há uns anos, numas férias de verão, desloquei-me propositadamente a Málaga, para ver o Museu Picasso que, não tendo a dimensão nem o espólio dos seus congéneres de Paris ou de Barcelona, se situa num edifício do século XVI, alvo de uma recuperação exemplar, já premiada internacionalmente.
Falo no edifício do Governo Civil, com as suas deficientes condições, quer para os utentes dos vários serviços que aí se concentram, quer para os trabalhadores desses serviços; falo do Museu Regional e do lamentável estado a que vai chegando, fruto de posturas e decisões que têm condenado à degradação esse magnífico edifício e o seu recheio; falo, finalmente (e numa escala menor, é claro), da imagem de abandono do exterior da Biblioteca Municipal, onde o branco das suas paredes há muito se transformou em cinzento, nada compatível com o excelente trabalho que os seus funcionários aí continuam a desenvolver.
São situações diferentes, mas que contrastam com os exemplos de que falei e com muitos outros. Fruto, como dizia Carreira Marques, numa entrevista na semana passada, sobre o estado do Museu, de opções políticas, que colocam em causa um entendimento entre os municípios, com cerca de trinta anos, que atribui ao Município de Beja o pagamento de 60% dos seus custos de funcionamento (reduzido, em 2012, para 48%).
Outras fossem as opções e os milhares de euros gastos em 2011 em eventos efémeros de alguns dias (Beja Wine Night ou Beja Brava, por exemplo) poderiam ser canalizados para a Assembleia Distrital, não se atingindo, nesse ano, a dívida de 95 mil euros e não deixando chegar esse importante equipamento cultural regional e nacional ao estado a que chegou.
Afinal, a Lei dos Compromissos é bem recente e não pode servir de desculpa para tudo. 

 11 Maio  



Beja - Museu Regional
Mérida - Parlamento da Extremadura

sábado, 5 de maio de 2012

Histórias de Abril (5) Aquela triste (e não leda) madrugada.


Santa Vitória, Novembro de 1975. Tinha sido um ano e meio frenético, depois de quarenta e oito de quietude opressora. Nesse curto período de tempo de um país tão antigo, a história fez-se a uma velocidade estonteante, que contrastou com a letargia em que o salazarismo propositadamente mergulhara os portugueses.
Dezanove meses durou o PREC, período vivido por muitos com paixão e esperança e referido por outros de uma forma acintosa. Esperança que chegou ao outro lado do oceano e que levou o Chico a cantar “Eu queria estar na festa, pá”. Mas, lá como cá, ditadura era ditadura e a canção foi censurada.
A revolução que dos cravos foi chamada, teve também, ao longo desses meses, cenas de violência, que fizeram mártires, como o padre Max, cujo lema de vida era “servir o povo e nunca se servir dele”. E foi palco, principalmente, de outros episódios, como o “28 de Setembro” ou o “11 de Março”, que ficaram na memória como tentativas de interromper a revolução em curso.
E, se o primeiro não passou de uma golpe palaciano, em nome de uma tal “maioria silenciosa”, que terminou com a substituição de Spínola por Costa Gomes, como presidente da república, o segundo já foi mais violento, dado que incluiu o bombardeamento aéreo de um quartel (o RALIS) e a morte de um soldado e ferimentos em outros. Foi a derradeira tentativa dos chamados “spinolistas”, que resultou numa viragem à esquerda, com a formação do Conselho da Revolução e a nacionalização de bancos e seguros.
Entre Março e Novembro acentuam-se, entretanto, as divergências entre os próprios “vencedores” deste último golpe, divisões profundas que se abrem, que criam feridas jamais cicatrizadas, entre partidos políticos e, sobretudo, entre militares que estavam do mesmo lado no 25 de Abril e que agora estão dos dois lados da barricada.
Vivem-se momentos históricos, como, por exemplo, a manifestação do dia 16 de Novembro, que encheu o Terreiro do Paço, onde, soldados e povo, lado a lado, gritam a sua fidelidade à revolução socialista, que seria irreversível em Portugal. Essa mesma revolução que trazia ao nosso país revolucionários de toda a Europa, para verem com os seus próprios olhos, como era possível, neste cantinho à beira mar plantado, semear e colher todos os seus sonhos mais lindos, de uma sociedade mais justa e igualitária.
Em Setembro e em Março, como em todo o país, também nas nossas aldeias foram feitas barricadas, para evitar a passagem dos contra revolucionários, parando e revistando carros, num misto de vigilância, mas também de festa, onde se confraternizava à volta de uma bebida e de um petisco. Onde se misturava a alegria e o sentimento de dever cumprido, a lutar por uma causa justa.
Nesse dia de Novembro, as coisas não correram da mesma maneira. Porque uma imagem da televisão teve um simbolismo e transmitiu uma mensagem que iria marcar todos os que se juntaram na Casa do Povo de Santa Vitória para, mais uma vez, defender a sua revolução. No écran, onde um dos “nossos”, Duran Clemente, capitão de Abril, estava a falar, surge, em seu lugar, uma comédia do Danny Kaye. Nesse momento, de angústia e de revolta, ninguém sabia que a emissão passara de Lisboa para o Porto.
Nessa noite e madrugada, a dúvida instalou-se: que se passara, quem iniciara as hostilidades, a esquerda ou a direita? Como estava a evoluir a situação, quem iria sair vencedor? Perguntas que nunca obtiveram resposta, ficando em todos um sentimento de orfandade e de abandono à sua sorte. Todos os que ali estavam, para defender a sua revolução, recolhiam a suas casas sem saber o dia seguinte, longe da euforia de Setembro e de Março. O próprio Chico cantava agora “Foi bonita a festa, pá”.
Afinal, como muitos chegaram a vaticinar, essa noite não foi o “fim da História”, que um tal Fukuyama anos mais tarde (erradamente) anunciou. É claro que, a partir dessa data, com a “normalização” democrática, abrandou significativamente a velocidade que marcou esses dezanove meses, mas foi possível levar à prática muito por que se lutava então : democratizar o acesso à Educação e à Saúde, melhorar as condições de vida e de trabalho, promover a Cultura dos cidadãos, etc.
Nesse dia de Novembro, perderam-se, certamente, muitas ilusões, mas ficaram os ideais, que perduram para além dos contratempos da História. Porque, como diz o “alentejano” José Mattoso, “…os ideais propõem-nos um horizonte que nunca conseguiremos alcançar: o ideal da pureza, da beleza, da abnegação – nunca lá chegaremos suficientemente…” (Público, 29 de Abril)
(Esta última “História de Abril” é dedicada à memória de Miguel Portas)

4 de Maio



Duran Clemente : a última imagem