Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

domingo, 5 de maio de 2013

O João


Cláudio Torres, em entrevista a Alexandra Lucas Coelho, na revista 2, do Público de hoje : "O João Honrado não podia andar de transportes públicos porque era apanhado, então vinha a pé de Coimbra até Aveiro para a gente falar. Eu vivia num quartito alugado e ele ficava lá. Vinha com os pés em sangue. A gente chamava-lhe o Patolas porque era um homem alto, com pés enormes. Chegava com as meias desfeitas e as minhas meias ficavam-lhe a meio do pé. Não é imaginável hoje o que era isto (...) Dormia no chão, numas almofadas(...) O João Honrado era um homem fantástico". Isto passava-se em 1958/1959, o Cláudio tinha aderido ao PCP com 19 anos, quando começou a trabalhar na fábrica de azulejos Aleluia e o João era funcionário do partido e vivia na clandestinidade. Um pequeno excerto de uma interessante entrevista, que nos mostra a fibra de que era feito o João (que nos deixou há pouco) e o próprio Cláudio, que passou por momentos dignos de livros de aventuras.

No dia seguinte à sua morte, escrevi este texto, para uma eventual publicação, que não chegou a acontecer. Já que estamos a falar desse grande homem, que admirei desde a minha juventude, aqui fica esse texto :

O João

Estava quente, esse fim de tarde de um dia de Junho de 1976. Era um verão quente, mas não tanto como o do ano anterior. Novembro arrefecera sonhos e esfriara as paixões que inundavam as ruas e as praças do nosso país desde “aquela madrugada” que a Sophia e todos nós esperávamos, desde aquele “dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio”
Aproximavam-se as terceiras eleições da nossa jovem democracia. Depois das constituintes, em 1975 e das legislativas, em 1976 (simbolicamente no dia 25 de Abril), seriam as presidenciais, onde eram quatro os candidatos.
Nessa tarde, em que a política (ainda) era tema de conversa entre as pessoas, no grupo que se encontrava reunido o grande dilema era em quem votar para derrotar aquele general que, naquele dia de novembro, com os seus óculos escuros, prenunciara o princípio do fim da revolução em que tão ardentemente acreditáramos: no candidato do Partido que, marcando o seu território, procurava manter o fiel eleitorado, ou naquele que simbolizava a esperança do regresso desses sonhos interrompidos? Para muitos (e não só para os mais jovens, como nós), era uma opção difícil, uma luta entre a razão (e a lealdade partidária) e o coração.
Estávamos nós nesta difícil encruzilhada, quando ele cruzou a porta do Centro de Trabalho. A sua figura imponente, a sua voz firme e decidida, fez-nos voltar a uma realidade que parecia estar tanto mais afastada, quanto maiores eram as dúvidas que as conversas nos traziam.
“O que é que aqueles cartazes, fazem ali no chão, em fez de estarem colados nas paredes?”, foi a pergunta que nos fez, para logo de seguida acrescentar “Toca a pegar nos baldes, nos pincéis e na cola e todos para rua”.
E lá fomos, os que estávamos juntos nessa tarde e ele, trinta ou mais anos mais velho do que a maioria de nós, rendidos à força das suas convicções e ao exemplo da sua vida de resistente e de lutador pela liberdade e por uma sociedade mais justa, afinal, a grande e elevada causa nos unia.
No outro dia de manhã, Santa Vitória acordou repleta de cartazes de Octávio Pato, o dobro ou o triplo dos que os apoiantes de Otelo (o Capitão de Abril que para muitos ainda era o Fidel que a nossa revolução precisava) tinham afixado.
Ele era o João, que tínhamos conhecido após o 25 de Abril e que, não obstante as diferenças de idade e do respeito e admiração que a sua biografia impunham (nomeadamente os anos passados na prisão e na clandestinidade), nos contagiava com o entusiasmo juvenil com que abraçava os ideais e as causas por que lutava. Entre muitas a que se dedicou, destacam-se a que evitou o fim do Diário do Alentejo ou, mais recentemente, a construção do monumento à Mulher Alentejana, concebido por Rogério Ribeiro e que se encontra no Parque da Cidade, em Beja.
Não foi por acaso que, no momento da sua morte, o jornal Público o designou como “… o mais carismático dos comunistas alentejanos”, tal como uns anos antes, Miguel Urbano Rodrigues, no prefácio ao seu livro “Textos Alentejanos” escrevera: “Duas palavras sobem-me logo na memória quando penso em João Honrado: revolucionário e alentejano. Não se pode compreender o homem, a sua vida e o seu combate sem tomar consciência de que nesse filho de Ferreira o alentejano e o revolucionário se fundem tempestuosamente, mas com harmonia”.
Em jeito de homenagem, deixamos aqui um excerto das palavras, escritas em março de 1963, aquando do seu julgamento político (reproduzidas em 1988 num artigo de Paulo Barriga, na revista Imenso Sul , que o blogue A Cinco Tons recordou poucos dias após a sua morte): “A cultura é contra os interesses do regime na medida em que esclarece as vastas camadas do nosso povo(…) O ódio do governo à cultura é o ódio do mentor do nazi-fascismo, Goebbels, quando afirmava: “Quando ouço falar em cultura, rapo da pistola”
Em memória do João, um Homem de Cultura.
Um abraço solidário e amigo à Alice, sua companheira.
(Foto : Alentejo Popular)