1. “O ovo da serpente” é um filme de Ingmar Bergman, datado de 1977 e nele se observa a forma perturbante (e inquietante), como o nazismo se implantou na Alemanha dos anos 20, criando o monstro que só viria a ser abatido em 1945.
Relembro esse filme porque, ao longo das últimas décadas, muitos outros ovos têm dado origem a serpentes das mais variadas espécies, que vão perigosamente pondo em causa a paz, a segurança e a vida de milhões de pessoas de todo o mundo.
Em 1979, quando a União Soviética invadiu o Afeganistão (para ajudar um “governo amigo”), no que viria a ser o seu “Vietnam” (e que muitos referem como uma das causas da sua desintegração, no final de 1991), vários foram os países muçulmanos e também ocidentais (entre os quais os EUA) que apoiaram os mudjaedines, na luta contra o governo afegão e os seus aliados soviéticos. E foi assim, no clima da Guerra Fria que então dominava o mundo, que nasceram os talibãs e o seu mais conhecido líder, o saudita Osama Bin Laden. E a Al-Qaeda, a serpente que cresceu a realizar atentados em vários países, que culminaram com o ataque às Torres Gémeas, em 11 de setembro de 2001.
A partir daí, inicia-se uma espiral de mudanças em vários países muçulmanos, como a invasão do Iraque e a queda de Saddam, em 2003 e, mais tarde, no seguimento da chamada “primavera árabe”, o fim de vários regimes, na Tunísia, no Egito e na Líbia, bem como a tentativa de derrube de Assad, na Síria, que deu origem à guerra civil que ainda hoje persiste.
Chegados a este ponto, aqueles que, de uma forma indireta ajudaram a criar esse monstro, terão de novo de se unir para, tal como em 1945, aniquilar e destruir a serpente que põe em causa a paz e a segurança no mundo, antes que seja ela a destruir tudo à sua volta.
2. Para além das mortes, da destruição de cidades e aldeias (e do património histórico com milhares de anos), outra das consequências do terror dos chamados jiadistas, tem sido a vaga de milhares de refugiados que fogem das suas casas e das suas terras e procuram noutros lugares (em particular na Europa) a segurança que não têm nos seus países. Contrariamente ao que aconteceu no período do terror nazi, em que só no final da guerra é que o mundo teve conhecimento do que sucedia em Auschwitz ou em Treblinka, nos dias de hoje, graças às televisões e às redes sociais, diariamente vemos as imagens dramáticas do mar Mediterrâneo ou das costas grega ou turca. E foi precisamente nesta última que o mundo teve conhecimento de um desses dramas, a morte de uma família (à exceção do pai) que fugira da Síria e do cadáver de uma das crianças, à beira-mar e recolhido por um polícia turco.
Ora este episódio, que tanto chocou o mundo, tem por detrás uma história tenebrosa que bem podia ter sido evitada, caso não reinasse uma realpolitik , que dá que pensar. Essa família fugira de Kobani, cidade síria situada mesmo junto à fronteira da Turquia e foi chocante ver as imagens da sua destruição pelos jiadistas do EI, observados à distância por soldados turcos juntos a várias dezenas de tanques de guerra. Ou seja, um exército da NATO, de um país que se prepara para aderir à União Europeia, contribuiu (porque, se o quisesse, impediria o ataque e a destruição da cidade) para a fuga em massa dos seus aterrorizados habitantes, entre os quais os que viriam a morrer na costa turca.
3. Há 19 anos, em agosto de 1996, tive a oportunidade de visitar a Tunísia. Desse país de muitos contrastes retive algumas lembranças que ainda hoje guardo, algumas das quais têm a ver com o tema deste artigo. Por exemplo, o contraste entre o litoral e a capital, Tunes, com algumas cidades do interior. Nas primeiras, um modo de vida “ocidentalizado” que se notava, nomeadamente, no vestuário e numa certa autonomia das mulheres, visível nas ruas e nas praias. No interior, a mulher tipicamente muçulmana, que praticamente “desaparecia de circulação” ao fim da tarde. Outro aspeto que retive, foi o culto da personalidade que existia em torno do presidente Ben Ali e que se revelava no seu retrato espalhado em tudo o que era espaço público ou privado. Embora a Tunísia fosse, na altura, considerado um dos países muçulmanos em que havia uma maior abertura política, religiosa e cultural, essa omnipresença do presidente (que caíu em janeiro de 2011) era uma das imagens de marca da Tunísia.
Finalmente, outro fato que se notava era a grande população de jovens que, contrariamente ao que existia (e existe) nas nossas aldeias, povoava as aldeias tunisinas. Jovens que, para além de Ziad (futebolista que jogou quatro anos e meio no Vitória de Guimarães), tinham como único tema de conversa o seu desejo de emigrar para a Europa, sobretudo para a França, dado que não quaisquer perspetivas nas aldeias onde nasceram e viviam. Enquanto escutava esses desejos, lembrava--me das conversas “antiárabes” que, já nessa altura, ouvia a alguns emigrantes conhecidos que trabalhavam em França e que viam nos magrebinos, além de concorrentes nos seus empregos, fonte de delinquência e de violência.
Por outro lado, nessa altura, bem ali ao lado, na vizinha Argélia, crescia o fundamentalismo islâmico que, inclusivamente chegou a ganhar eleições, anuladas posteriormente, o que originou confrontos com milhares de mortos. Não era difícil, pois, que os ecos e os efeitos do que se passava no país vizinho chegassem a esses jovens.
Este foi, talvez, um dos aspetos com que a Europa, e em particular a França, não souberam lidar e os resultados estão à vista : milhares de jovens (muitos deles já nascidos europeus), sem ocupação, vivendo em subúrbios descaraterizados, facilmente recrutados por imãs radicais, em nome de algo que nem eles muito bem sabem e dispostos a tudo, incluindo a dar a sua própria vida.
Ao mesmo tempo, assiste-se na Europa (e não apenas em França, com a FN), a um recrudescer das ideias racistas e xenófobas de uma extrema-direita que, tal como os jiadistas, tem dentro de si o germe do ovo da serpente, e que aguarda apenas o momento certo para fazer explodir a violência que a ambos carateriza.
11 de dezembro |