Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sábado, 12 de dezembro de 2015

O ovo da serpente - onde se fala de um filme de Bergman, de uma cidade mártir e da Tunísia


1. “O ovo da serpente” é um filme de Ingmar Bergman, datado de 1977 e nele se observa a forma perturbante (e inquietante), como o nazismo se implantou na Alemanha dos anos 20, criando o monstro que só viria a ser abatido em 1945.
Relembro esse filme porque, ao longo das últimas décadas, muitos outros ovos têm dado origem a serpentes das mais variadas espécies, que vão perigosamente pondo em causa a paz, a segurança e a vida de milhões de pessoas de todo o mundo.
Em 1979, quando a União Soviética invadiu o Afeganistão (para ajudar um “governo amigo”), no que viria a ser o seu “Vietnam” (e que muitos referem como uma das causas da sua desintegração, no final de 1991), vários foram os países muçulmanos e também ocidentais (entre os quais os EUA) que apoiaram os mudjaedines, na  luta contra o governo afegão e os seus aliados soviéticos. E foi assim, no clima da Guerra Fria que então dominava o mundo, que nasceram os talibãs e o seu mais conhecido líder, o saudita Osama Bin Laden. E a Al-Qaeda, a serpente que cresceu a realizar atentados em vários países, que culminaram com o ataque às Torres Gémeas, em 11 de setembro de 2001.
A partir daí, inicia-se uma espiral de mudanças em vários países muçulmanos, como a invasão do Iraque e a queda de Saddam, em 2003 e, mais tarde, no seguimento da chamada “primavera árabe”, o fim de vários regimes, na Tunísia, no Egito e na Líbia, bem como a tentativa de derrube de Assad, na Síria, que deu origem à  guerra civil que ainda hoje persiste.
E foi precisamente com o desmembramento – político, militar e territorial – de três desses países (Iraque, Líbia e Síria) e, novamente com a “ajuda involuntária” de alguns países ocidentais a grupos armados, que germinaram vários ovos, qual deles mais perigoso, que vieram a dar origem ao autointitulado “Estado Islâmico”. Controlando vastas áreas nesses territórios, criaram uma gigantesca serpente, que espalha a morte e o terror, seja em execuções em massa, no derrube de aviões civis, ou em atentados suicidas, no Egito, em Beirute ou em Paris.

Chegados a este ponto, aqueles que, de uma forma indireta ajudaram a criar esse monstro, terão de novo de se unir para, tal como em 1945, aniquilar e destruir a serpente que põe em causa a paz e a segurança no mundo, antes que seja ela a destruir tudo à sua volta.
2.   Para além das mortes, da destruição de cidades e aldeias (e do património histórico com milhares de anos), outra das consequências do terror dos chamados jiadistas, tem sido a vaga de milhares de refugiados que fogem das suas casas e das suas terras e procuram noutros lugares (em particular na Europa) a segurança que não têm nos seus países. Contrariamente ao que aconteceu no período do terror nazi, em que só no final da guerra é que o mundo teve conhecimento do que sucedia em Auschwitz ou em Treblinka, nos dias de hoje, graças às televisões e às redes sociais, diariamente vemos as imagens dramáticas do mar Mediterrâneo ou das costas grega ou turca. E foi precisamente nesta última que o mundo teve conhecimento de um desses dramas, a morte de uma família (à exceção do pai) que fugira da Síria e do cadáver de uma das crianças, à beira-mar e recolhido por um polícia turco.   
Ora este episódio, que tanto chocou o mundo, tem por detrás uma história tenebrosa que bem podia ter sido evitada, caso não reinasse uma realpolitik , que dá que pensar. Essa família fugira de Kobani, cidade síria situada mesmo junto à fronteira da Turquia e foi chocante ver as imagens da sua destruição pelos jiadistas do EI, observados à distância por soldados turcos juntos a várias dezenas de tanques de guerra. Ou seja, um exército da NATO, de um país que se prepara para aderir à União Europeia, contribuiu (porque, se o quisesse, impediria o ataque e a destruição da cidade) para a fuga em massa dos seus aterrorizados habitantes, entre os quais os que viriam a morrer na costa turca.



Tudo isso tem uma explicação: os habitantes de Kobani eram, na sua maioria, curdos, alguns dos quase trinta milhões que constituem um povo sem estado, espalhado pela Turquia, pela Síria, pelo Irão, pelo Iraque e por outros países. Depois de, ao longo da História, terem sido gaseados por Saddam Hussein, massacrados pelos turcos, reprimidos pelos iranianos, esses curdos, cuja combatividade na luta contra os jiadistas tem sido reconhecida por todos, foram abandonados à sua sorte e, caso tivessem a ajuda que, mais tarde a aviação ocidental veio dar (quando a cidade já estava destruída), talvez ainda hoje aquela família estivesse junta, a viver feliz na cidade e não tivéssemos assistido às chocantes imagens da criança mártir.
3.   Há 19 anos, em agosto de 1996, tive a oportunidade de visitar a Tunísia. Desse país de muitos contrastes retive algumas lembranças que ainda hoje guardo, algumas das quais têm a ver com o tema deste artigo. Por exemplo, o contraste entre o litoral e a capital, Tunes, com algumas cidades do interior. Nas primeiras, um modo de vida “ocidentalizado” que se notava, nomeadamente, no vestuário e numa certa autonomia das mulheres, visível nas ruas e nas praias. No interior, a mulher tipicamente muçulmana,  que praticamente “desaparecia de circulação” ao fim da tarde. Outro aspeto que retive, foi o culto da personalidade que existia em torno do presidente Ben Ali e que se revelava no seu retrato espalhado em tudo o que era espaço público ou privado. Embora a Tunísia fosse, na altura, considerado um dos países muçulmanos em que havia uma maior abertura política, religiosa e cultural, essa omnipresença do presidente (que caíu em janeiro de 2011) era uma das imagens de marca da Tunísia.

Finalmente, outro fato que se notava era a grande população de jovens que, contrariamente ao que existia (e existe) nas nossas aldeias, povoava as aldeias tunisinas. Jovens que, para além de Ziad (futebolista que jogou quatro anos e meio no Vitória de Guimarães), tinham como único tema de conversa o seu desejo de emigrar para a Europa, sobretudo para a França, dado que não quaisquer perspetivas nas aldeias onde nasceram e viviam. Enquanto escutava esses desejos, lembrava--me das conversas “antiárabes”  que, já nessa altura, ouvia a alguns emigrantes conhecidos que trabalhavam em França e que viam nos magrebinos, além de concorrentes nos seus empregos, fonte de delinquência e de violência.
Por outro lado, nessa altura, bem ali ao lado, na vizinha Argélia, crescia o fundamentalismo islâmico que, inclusivamente chegou a ganhar eleições, anuladas posteriormente, o que originou confrontos com milhares de mortos. Não era difícil, pois, que os ecos e os efeitos do que se passava no país vizinho chegassem a esses jovens.
Este foi, talvez, um dos aspetos com que a Europa, e em particular a França, não souberam lidar e os resultados estão à vista : milhares de jovens (muitos deles já nascidos europeus), sem ocupação, vivendo em subúrbios descaraterizados, facilmente recrutados por imãs radicais, em nome de algo que nem eles muito bem sabem e dispostos a tudo, incluindo a dar a sua própria vida.
Ao mesmo tempo, assiste-se na Europa (e não apenas em França, com a FN), a um recrudescer das ideias racistas e xenófobas de uma extrema-direita que, tal como os jiadistas, tem dentro de si o germe do ovo da serpente, e que aguarda apenas o momento certo para fazer explodir a violência que a ambos carateriza.
11 de dezembro

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