Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sábado, 20 de abril de 2024

Notas d’Abril : Participação.

Beja Merece + , 29 junho 2017
Foto: João Espinho

“Essa torrente onde se misturava a alegria redentora da libertação com a esperança sem fim e também a raiva contra a opressão, a exploração e o medo do passado relativamente ao qual era preciso fazer justiça, para que não voltasse, nunca mais. Um levantamento popular vindo de baixo, do âmago da condição social dos que nunca tinham tido voz e entravam tumultuosamente na história.”

Fernando Rosas, Ensaios de Abril, pág. 98

Em entrevista dada à revista História (nº 46, outubro 2023), António Costa Pinto (meu antigo colega de faculdade, professor, investigador e conhecido comentador político televisivo), refere a “grande dinâmica de movimentação da sociedade civil”, verificada após o 25 de Abril, “na conjuntura de 74 e 75”, fruto da “genuína dimensão de participação política, não só eleitoral, mas também social”. Ora, segundo este historiador e especialista em ciência política, “… rapidamente, com a consolidação da democracia, seguiu-se uma etapa de desmobilização…”, que o leva a esta conclusão: “Portugal tem um baixo nível de participação global, não é apenas política [mas também social]…”.

Cinquenta anos depois do 25 de Abril, importa refletir sobre os motivos que levam a este “baixo nível de participação política”, contrário a um dos desígnios da data libertadora que tantos sonhos alimentou: democratizar.

Tenho a convicção de que, para reforçar a Democracia e combater o populismo que a ameaça, é preciso incentivar e apoiar a participação dos cidadãos nas mais variadas áreas da sociedade. Infelizmente, não é isto que tem acontecido em muitas ocasiões. Basta ver a desconfiança e até a hostilidade com que, não poucas vezes, foi encarado o movimento de cidadãos bejenses, nascido no início de 2011, para lutar pela manutenção das ligações ferroviárias diretas a Lisboa.

Um responsável político regional, ao anunciar, em 2017 o lançamento de “um concurso [em 2018] para aquisição de novas carruagens” com vista ao retomar dessas ligações, acrescenta que isso só se concretizava “depois de meses de reuniões e contactos sem alaridos” (esse concurso, para automotoras bimodo – diesel e elétricas – só seria lançado em 2021 e prevê-se que as primeiras cheguem em 2025). O então deputado omitia, assim, as inúmeras reuniões que elementos do Beja Merece+ tiveram com governantes, grupos e comissões parlamentares, além, claro, das petições com milhares de assinaturas e das ações de rua com centenas de pessoas. Curiosamente, há poucos dias, esse mesmo político, ao noticiar a instalação do aparelho de ressonância magnética no hospital de Beja, volta a bater na mesma tecla, ao referir “todos aqueles que trabalharam, sem gritaria, para que este dia chegasse”.

Esta omissão reflete-se igualmente nas autodenominadas “comemorações oficiais” do cinquentenário da Revolução dos Cravos, em Beja: nas várias conferências programadas não cabe o debate sobre aquele que foi o maior movimento de participação cívica na região que, para além do seu propósito inicial, trouxe para a discussão pública a reivindicação de melhores acessibilidades rodoviárias ou a rápida definição do futuro do aeroporto.

Um outro aspeto sobre o qual se falou aquando das últimas eleições legislativas, foi o facto de, nos círculos eleitorais mais pequenos, com é o caso de Beja, que só elege três deputados, uma grande parte dos votos não ter qualquer reflexo nessa eleição (28% dos eleitores em 2024, 36% em 2022). Isto faz com que, eleição após eleição, muitos cidadãos, que escolhem de forma consciente em quem votar (não acolhendo a teoria do “voto útil”), acabam por se sentir excluídos do sistema, uma vez os seus votos apenas contam para a percentagem nacional desses partidos/coligações. Tal podia ser minimizado com a existência do tão falado (na altura das eleições) círculo de compensação, em vigor nos Açores, destinado a compensar os partidos penalizados nos círculos eleitorais mais pequenos. Como sempre, está nas mãos dos dois maiores partidos a alteração da lei eleitoral, nesse sentido. Tenho dúvidas que tal venha a acontecer e que em futuras eleições se esteja de novo a lamentar essa lacuna e que pode mesmo limitar a participação dos cidadãos na vida democrática.

Uma outra lacuna que PS e PSD já podiam ter resolvido tem a ver com a regionalização, um processo que avançou baseado numa distribuição das CCDR pelos dois partidos, de acordo com a sua implantação autárquica. Através de “eleições” reservadas a um colégio eleitoral de autarcas, à exceção do Alentejo, em que houve dois candidatos, foram “eleitos” presidentes desses órgãos os candidatos únicos nomeados por António Costa e Rui Rio. Sem entrar, aqui e agora, em pormenores sobre este processo, sobre o qual tenho algumas dúvidas (isto, sem pôr em causa a opinião favorável que tenho relativamente à implementação da regionalização), reitero o que já escrevi aqui, no Diário do Alentejo, em crónica publicada no dia 24 de Novembro de 2017: esta grande reforma do nosso sistema político, que consta na constituição aprovada em 1976, só será verdadeiramente democrática quando os cidadãos nela puderem participar, através do seu voto, para a eleição de uma assembleia regional, cujos eleitos sejam os seus verdadeiros representantes na região. Essa assembleia terá o papel fiscalizador das decisões do governo regional, diga-se CCDR, algo que atualmente não existe.

Para além dos níveis nacional e regional, também a nível local (e, neste caso, falando de Beja) há situações que não contribuem favoravelmente para uma verdadeira participação dos cidadãos na vida da sua comunidade. Por falta de elementos, não me quero referir ao instrumento que, neste momento, a autarquia invoca como símbolo dessa participação, o Orçamento Participativo. Sendo uma iniciativa interessante, adotada em vários concelhos do país, não deverá ser, no entanto, a única a incentivar essa participação cívica.

Refiro-me, em concreto a três órgãos importantes para a prossecução das melhores políticas nas respetivas áreas: o Conselho Municipal de Educação, o Conselho Local de Ação Social e o Conselho Municipal da Cultura. Sobre os dois primeiros, não se conhecem quaisquer atividades, uma vez que não é dado conhecimento das decisões tomadas nas suas reuniões, nem sequer da realização destas (partindo do princípio que estes dois órgãos estão a funcionar, como deveria acontecer, e que reúnem regularmente). De qualquer modo, é uma lacuna que não deixa de ser sentida, nomeadamente em duas áreas em houve mais transferências de competências para as autarquias locais e cujo funcionamento democrático deveria ser exemplar.

Já quanto ao Conselho Municipal da Cultura, a situação é mais preocupante. O seu regulamento foi publicado no Diário da República, no dia 30 de Janeiro de 2008, numa época em que pouco ou nada se conhecia acerca da existência de entidades semelhantes no nosso país, após um processo muito participado pelos agentes e associações culturais locais, que contribuíram decisivamente para o seu conteúdo. Após as eleições de 2009, e com a mudança do executivo municipal, este importante instrumento para a participação de agentes e associações culturais na discussão e formulação de políticas culturais concelhias e regionais, foi pura e simplesmente metido na gaveta, de onde não mais saiu. Neste momento, esse regulamento nem consta no site da Câmara Municipal de Beja, o que é um contrassenso, uma vez que, formalmente, o CMC ainda não foi extinto.

Finalmente, numa altura em que se festejam os cinquenta anos do 25 de Abril, volto às comemorações a decorrer em Beja, já atrás referidas. Quando tive conhecimento da aprovação pela Assembleia Municipal realizada no dia 13 de julho de 2023, da chamada "Comissão Organizadora das Comemorações do 50º Aniversário do 25 de Abril de 1974", escrevi numa rede social o seguinte:Em Beja parece que não há mais vida para além dos partidos políticos (que têm, obviamente, o seu insubstituível lugar na Democracia reimplantada em 1974, mas que não são os únicos construtores e protagonistas da vida política, económica, social, educativa, cultural, desportiva do concelho, ao longo dos últimos quase 50 anos).” Tudo isto porque essa comissão era composta apenas por eleitos dos três grupos políticos representados dessa assembleia (7 elementos) e da Câmara Municipal (dois elementos). Ou seja, ficavam de fora representantes da chamada sociedade civil, impedindo a sua participação na elaboração de um único programa no concelho de Beja, que contivesse todas as iniciativas organizadas pelas diferentes entidades, incluindo, naturalmente, os dois órgãos autárquicos municipais.

E, assim, temos em Beja, as autodenominadas “comemorações oficiais” (com direito a carimbo próprio nos materiais de divulgação) e as “outras”, as que não são organizadas por essa comissão, algo que, em minha opinião, não tinha de acontecer, numa efeméride tão importante como é a comemoração de 50 anos de liberdade e de democracia.

Apenas como exemplo, refiro três iniciativas em que estive presente e que não constam das “comemorações oficiais”, sendo que qualquer uma delas merecia ter tido o destaque que estas têm : uma tertúlia, no espaço Os Infantes, onde três cidadãos relataram as suas vivências, em diferentes contextos e locais, antes e após o 25 de Abril; a apresentação do livro e da exposição sobre os mineiros de Aljustrel, na Biblioteca Municipal; a conferência “Da lei da fome ao 25 de Abril”, pelo professor Fernando Oliveira Baptista, no Núcleo Museológico da rua do Sembrano.

Numa altura em que se reflete sobre tão importante data na nossa história coletiva, qualquer destas três iniciativas deu contributos significativos para um melhor conhecimento das suas causas, um dos grandes objetivos que devem nortear as comemorações, oficiais ou não.

Com esta discriminação que não se compreende, perdeu-se, deste modo, uma oportunidade para cumprir um dos grandes desígnios da data que agora festejamos: a participação livre e democrática dos cidadãos na vida das suas comunidades, deixando de ser apenas espetador passivo e reprimido, como era na ditadura, para ser ator livre e interveniente da sua “polis”, direito e dever, ao mesmo tempo, dos cidadãos atenienses de há 2500 anos.


                                                                19 de Abril de 2024




sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Notas d’Abril : Revolução.

“Todos os sonhos eram possíveis, toda a loucura praticável.”
Eduardo Ferro Rodrigues, Júlia/SIC, 7 dezembro 2023

Quando iniciava o tema 25 de Abril nas aulas do 12º Ano, partilhava sempre com os alunos duas notas, a primeira das quais de índole pessoal: foi um privilégio (único na maioria das gerações) ter vivido e participado naqueles momentos de transformação nas nossas vidas; comparar esses dias frenéticos (revolução) com a atualidade (evolução), é o mesmo que comparar um carro à velocidade de 100 km/hora (por vezes desgovernado e imprevisível) com outro a 10 km/hora, em que tudo (ou quase) é previsível.

Perante a sua natural curiosidade, de entre os vários episódios relatados, destaco o visionamento do vídeo da RTP Ensina sobre a prisão dos pides em Beja (que interrompeu a aula de Filosofia na sala 13, mesmo em frente à vivenda da avenida Vasco da Gama onde tudo estava a acontecer). Memorável para os alunos era a visita de estudo ao Museu do Aljube, em Lisboa, onde se confrontavam com os métodos da ditadura, como a censura ou os horrores da tortura, num local onde podiam ainda observar (e aí entrar) os tristemente célebres “curros”, celas minúsculas, claustrofóbicas. Mas era também nesse museu que testemunhavam a Resistência, nos rostos e nas vozes de homens e mulheres que lutaram pela Liberdade, muitos em troca da própria vida.

Os três “D”.

Há cerca de quatro meses (24.11.2023), numa entrevista à revista E/Expresso, o major Mário Tomé, um dos protagonistas do 25 de Abril, disse algo que contradiz, de certo modo, o que se passou a seguir: “Grande parte do pessoal que fez o 25 de Abril (…) o que queria era um 28 de Maio democrático. Derrubavam o Governo e depois iam para os quartéis, como era dantes.”

De facto, Democratizar não era o único objetivo do MFA, havia outros dois, Descolonizar e Desenvolver. Sérgio Godinho, no seu primeiro álbum editado em democracia, interpretou bem esses objetivos ao cantar “Só há liberdade a sério quando houver / A paz, o pão, habitação, saúde, educação”.

Alcançadas as liberdades – individuais, políticas, de expressão, de reunião, de associação – no “golpe de estado” referido pelo major Tomé, quase sem oposição por parte do regime, quase sem derramamento de sangue (apenas manchado pelo assassínio de quatro cidadãos pelos esbirros da PIDE/DGS), o passo seguinte era acabar com a guerra, algo que só poderia ser feito com a aplicação do segundo objetivo: Descolonizar.

Para se explicar esse momento da nossa História (bem como a guerra colonial que o antecedeu), é preciso recuar alguns anos, quando o ditador Salazar preferiu o isolamento internacional (desde a ONU ao Vaticano), ao recusar o que os países europeus fizeram nos anos 50 e 60 do século passado: a descolonização de África. Este “orgulhosamente sós” do ditador custou caro em vidas humanas: mais de oito mil soldados portugueses mortos (jovens empurrados para uma guerra que nada lhes dizia), tal como milhares de guerrilheiros dos movimentos de libertação (os “terroristas”, na linguagem da ditadura) ou os massacres de civis inocentes (como o levado a cabo pela UPA, em Angola ou o de Wiryamu, em Moçambique).

Por tudo isto, foi um processo traumático e doloroso o regresso de milhares de pessoas das colónias africanas, deixando para trás toda uma vida, memórias e afetos, tal como foram dramáticas as guerras civis que se seguiram nos novos países independentes. Não foi o 25 de Abril, mas sim o regime ditatorial derrubado pelos militares o responsável por esta situação vivida nos primeiros anos da nossa democracia.

O PREC.

No dia 20 de abril de 1942, uma delegação dos chamados “sindicatos nacionais” (com direções nomeadas pelo regime) foram recebidos pelo “Chefe da Revolução Nacional”, para lhe expor as linhas gerais de um documento assinado por dirigentes (autointitulados de seus “soldados fiéis”) de 56 sindicatos. E que retrato do país mostrava esse documento? Falava do “agravamento constante do seu [das “massas trabalhadoras”] penoso viver, fustigado, cada vez mais, pelas mais duras misérias”, do “crescimento da miséria social”, ao mesmo tempo que se verificava o “crescimento largo da riqueza de alguns à custa de todos” – J.P. Castanheira, Os últimos do Estado Novo, pág. 260/261.

Em 1968, último dos trinta e seis de Salazar como Presidente do Conselho, o sociólogo e professor universitário Adérito Sedas Nunes publica a obra Sociologia e Ideologia do desenvolvimento, um conjunto de estudos e ensaios onde, entre outros aspetos, aborda a situação do país em diversas áreas, comparando-a com “16 países da Europa [ocidental]” : “…somos o penúltimo, na capitação do consumo de energia (…) nas taxas de escolarização (…) na capitação do consumo de carne (…) atrás de nós só a Turquia (…) somos o último na capitação do consumo de leite (…) na capitação diária de proteínas (…) na proporção do número de alunos do ensino superior para o conjunto da população…”

Não admira, pois, que, dois anos após a publicação deste livro, os dados estatísticos refletissem os elevados níveis de pobreza e os baixos índices de desenvolvimento, a que não serão alheios os custos da guerra colonial, cerca de 21,8 mil milhões de euros, o que significava um gasto anual médio de 22% das despesas do Estado (estudo de Ricardo Ferraz, editado em 2019).

Assim, por exemplo, em 1970, os dados do INE eram os seguintes: mortalidade infantil – 55 por mil; analfabetismo – 25,7%; casas com água canalizada – 47,4%. Consequência deste atraso eram as elevadas taxas de emigração económica, a que se juntavam o exílio político e a fuga à guerra:  só neste ano emigraram 180 mil portugueses, 110 mil dos quais eram clandestinos.

Conquistada a liberdade, terminada a guerra, inicia-se um período de grandes transformações económicas e sociais, seguindo o terceiro lema do MFA – Desenvolver. É o tempo do PREC – Processo Revolucionário em Curso –, expressão muitas vezes caluniada e denegrida, “… um novo tempo histórico, num novo espaço social…” em que “… três milhões de pessoas participaram diretamente…” – R. Varela e R.D. Santa, Breve História de Portugal –  A era Contemporânea, pág. 380 e 386.

É uma época com um caráter anticapitalista que a maior parte das forças políticas adotou (tal como largos setores militares), para combater o “capitalismo selvagem” protegido pela ditadura, aliada dos grandes grupos monopolistas. Selvagem, mesmo no estrito sentido do termo, ao reprimir violentamente trabalhadores, com aconteceu com o assassinato de Catarina Eufémia em 1954 ou dos dois mineiros de Aljustrel, em 1962.

Em 1974, quase todas as forças políticas defendiam o socialismo, ainda que com cambiantes diferentes, adotado em várias latitudes: na União Soviética e no leste europeu, na China, na Albânia, na Jugoslávia ou na Europa do Norte. À distância de quase cinquenta anos, não deixa de ser esclarecedor ler declarações como esta, de António Rebelo de Sousa, destacado militante do então PPD, numa mesa redonda onde estavam também dirigentes do PS, a LUAR e do MRPP (!): “… não há qualquer possibilidade objetiva de uma democracia de tipo conservador em Portugal (…) a sua [do PPD] opção é uma opção socialista a longo prazo, no sentido em que defende que as alavancas do poder político e económico devem ser controladas pelas classes trabalhadoras…” – in revista Manifesto, nº 5, Janeiro de 1975.

De resto não deixa de ser significativo o facto de na Constituição de 1976 (aprovada já depois do 25 de Novembro) que apenas teve o voto contra do CDS, continuarem expressões como “o caminho para a sociedade socialista” ou uma “República soberana empenhada na transformação numa sociedade sem classes”.

Cinquenta anos depois, mais do que criticar a posteriori os eventuais excessos de um período revolucionário, nada comparáveis com a violência radical das duas grandes Revoluções da História, a Francesa, em 1789 e a Russa, em 1917, interessa conhecer e estudar às suas causas mais profundas, que encontramos, precisamente, na História. Como dizia Alberto Martins, a propósito dos cinquenta anos da crise académica de 1969:  “ Só quem compreende o passado pode sonhar e construir o futuro “ (Público, 23 de abril de 2019).

Aspetos importantes deste período único da nossa História, não podem (nem devem) ser justificados com discursos simplistas ou ideológicos, com expressões como “se tivesse sido assim” ou mesmo considerados tabus, impedindo a sua análise e discussão.

Por exemplo, a Reforma Agrária, cujas causas encontramos na literatura (Seara de Vento, de Manuel da Fonseca) ou no cinema (Raiva, de Sérgio Tréfaut): a pobreza da maioria do povo alentejano, que contrastava com a riqueza dos grandes proprietários agrícolas, apoiantes do regime (que os protegia com as suas forças repressivas, PIDE e GNR) e que contavam, ainda, com a cumplicidade de parte significativa da Igreja Católica.

Mas também em estudos académicos, como o que foi publicado originalmente pela Universidade de Oxford em 1971 e que, por razões óbvias, só em 1977 foi editado em Portugal (com o título “Ricos e Pobres no Alentejo”). Nele, José Cutileiro dá-nos uma pormenorizada visão da freguesia alentejana por si estudada (com o pseudónimo de Vila Velha), nomeadamente na primeira parte, Posse da Terra – Estratificação Social. Como escrevia a revista The Political Quarterly em 1976, “ José Cutileiro (…) estudou uma sociedade dominada ainda pelo analfabetismo, pela superstição e pela miséria, cujas reivindicações políticas eram implacavelmente reprimidas “. E citando o autor, “… quem quer que esteja familiarizado com os trabalhadores sabe que estes reprovam vivamente a actual distribuição da terra (…) São unânimes em sustentar que, pelo menos os grandes latifundiários deveriam ser sistematicamente expropriados da maior parte das suas terras “.

23 fevereiro 2024
 






sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Notas d’Abril: Janeiro 1974.

 

A aldeia.

Em Janeiro de 1974 morava na aldeia. Não já na casa onde nascera 15 anos antes, mas numa outra, distante cem metros que, naquela tarde de 1972, quando saí do autocarro, vindo de Beja, me pareceram cem quilómetros, tal a tristeza que senti. Os meus amigos, vizinhos, sítios de brincadeira, ficavam para trás, tal como a casa da Rua da Estrada Nova, substituída pela da Rua das Eiras, maior, com melhores condições e com um quintal mais amplo.

A rua onde nasci e vivi 14 anos tinha esse nome pouco convencional, que nós abreviávamos para “Estrada Nova”. Não era assim tão nova, tinha sido construída no final do século XIX, tal como a ponte sobre a ribeira.

A “estrada nova”, que ligava a aldeia a Beja, numa distância de 16 quilómetros, trouxe inúmeras vantagens, de que se destaca a ligação à capital do distrito, passando junto à estação ferroviária situada na linha Barreiro-Beja-Vila Real de Santo António, o que facilitava a mobilidade da população.

A nova estrada trouxe também outras alterações, sobretudo no urbanismo da aldeia, até aí desenhado sobre uma pequena colina, debruçada sobre a ribeira que a abraçava. A “nova” aldeia vai estender-se ao longo da nova via, com a construção de habitações, incluindo mercearias, tabernas, sapateiros e ferradores. Mas, o que mais marca a agora Rua 25 de Abril, é aquilo que podemos designar como um complexo agroindustrial, que englobava uma fábrica de moagem, um lagar de azeite, uma grande cavalariça, para além de vários casões de apoio à atividade agrícola.

A estrada trouxe ainda outras mudanças, que transformaram a fisionomia da aldeia, com a construção, na nova entrada desta, da escola e da Casa do Povo. Junto a elas nasceria ainda o campo de futebol, tornando-se os três espaços novos polos de atração para os habitantes de todas as idades.

Era na Casa do Povo que quase tudo se passava (a sociedade recreativa já tinha sido extinta): desde as consultas do médico aos bailes, da televisão ao cinema ambulante e onde se liam os jornais. Foi aí que assisti ao mundial de 1966, aos Sete Magníficos e era no seu exterior que esperávamos, nas noites quentes de Agosto, pela música que abria o resumo do dia da Volta a Portugal.

Em 1974, ainda que sem balneários, iluminação (desde crianças que corríamos atrás da bola, muitas vezes até se ver apenas esta e os nossos vultos) ou vedação (a primeira foi feita com sulipas cedidas pela CP e com trabalho voluntário), Santa Vitória tinha o “privilégio” de possuir um campo de futebol (algo que muitas aldeias da região não tinham), o que fez com que, desde 1968, a equipa da Casa do Povo participasse no campeonato da FNAT.

E foi também em 1968 que um novo elemento veio fazer parte da aldeia: a Barragem do Roxo. O seu enchimento foi vertiginoso, com as suas águas a invadir quintais e hortas, entrando até pela oficina situada junto à ponte. E era na barragem, para onde ia de bicicleta, em grupo ou sozinho, que passava parte do meu tempo (sobretudo nas férias escolares), na pesca ao achigã, o novo peixe aí introduzido, mais aliciante que as pardelhas ou os bordalos da ribeira.

Em Janeiro de 1974 éramos felizes na aldeia, ainda que, devido à pobreza e à falta de trabalho de muitos dos seus habitantes, amigos de infância e suas famílias a deixassem. Aos poucos deixou de haver barbeiros e sapateiros, algumas “vendas” e mercearias fecharam mesmo. “Luxos” como o abastecimento de água ou os esgotos das habitações e a recolha do lixo não existiam. A Mina da Juliana, que pertencia à freguesia não tinha luz elétrica (além de uma parte das casas ter sido destruída pelas águas da barragem).

Os habitantes da aldeia não tinham qualquer participação na escolha do presidente da Junta de Freguesia, que era nomeado pela ditadura.

A escola.

Em Janeiro de 1974 era aluno do Liceu Nacional de Beja, no 1º Ano do Curso Complementar (antigo 6º Ano, atual 10º Ano). Fizera, até aí, um percurso um pouco diferente do habitual.

Com cinco anos e meio, frequentei a escola de Santa Vitória-Gare, onde a professora era a minha tia Bia, regente escolar e que acolhia alunos de vários locais, como os filhos dos ferroviários (a estação ficava mesmo em frente), de trabalhadores do monte do Outeiro e de outros montes à volta. No ano letivo seguinte, quando completei a idade legal para entrar na escola primária, fui para a escola da aldeia onde, graças a esse ano que passei na escola da estação, apenas estive três anos.

Em 1968 iniciou-se uma nova etapa, as aulas em Beja, que durou até 1975. E, com ela, grandes mudanças, logo no primeiro ano. A escolha entre ensino liceal e ensino técnico logo após a 4ª classe, fora reconhecida pelo regime como “demasiado precoce”, tendo sido criado o “ciclo preparatório do ensino secundário”, com duração de dois anos, iguais para todos os alunos, tendo sido abolidos os exames de admissão. Fui, assim, aluno do primeiro ano de funcionamento da Escola Preparatória de Mário Beirão, criada por uma portaria de 9 de setembro de 1968 e que iria funcionar num anexo do liceu de Beja. Sinal dos tempos, a turma era exclusivamente masculina.

Seguiram-se os três anos do Curso Geral dos Liceus (a unificação desse ciclo, o atual terceiro, só se iniciaria em 1976), findos os quais iniciei o Curso Complementar, na área de Letras (atual área de Humanidades), numa turma quase exclusivamente feminina. Estes dois últimos anos tiveram claramente duas etapas, antes e após o 25 de Abril.

Em Janeiro de 1974, além das disciplinas normais, ainda tínhamos a OPAN, Organização Política e Administrativa da Nação e havia a política do livro único. Como, entretanto, deixara de ser obrigatória a frequência, “safei-me” da Mocidade Portuguesa.

Numa escola conservadora, como era o Liceu de Beja, destacava-se a professora de Filosofia (que me tratava por “Sócrates”), jovem, recém-chegada da faculdade e que não tinha problemas em citar Marx, além de Aristóteles ou Platão e que chegou a levar um grupo de alunos a Lisboa, para assistir, na cave de uma conhecida cervejaria, a uma peça de teatro (A Ceia) de um grupo com um nome bem elucidativo: Comuna. Um dia, para a “provocar”, deixei à vista, na aula, o livro (proibido na altura) “A História me absolverá”, de Fidel Castro, emprestado por um colega. No final da aula, chamou-me para me repreender por andar com esse livro à mostra, dado o perigo que isso representava. Foi essa mesma professora que me incentivou a ler Sartre e Camus.

Os livros e os jornais.

A minha relação com os livros começou muito cedo, tal como muitas crianças que viviam nas aldeias, através da biblioteca itinerante da Gulbenkian, neste caso a 28, com o inestimável contributo do senhor Alberto Veríssimo, que nos aconselhava este ou aquele livro. Após o 25 de Abril tive uma agradável surpresa, ao conhecer o seu passado antifascista, com passagens pelo MUD e CDE e apoio a Norton de Matos e Humberto Delgado.

Em janeiro de 1974 já tinha uma pequena biblioteca, sobretudo com livros de duas coleções de bolso, das editoras Minerva e Europa América, comprados na SAMID durante o ano anterior (“Os homens e os outros”, de Elio Vittorini foi adquirido em 27-7-1973, a data que nele registei). Seguindo o conselho da professora de Filosofia, li dois dos livros que me marcaram para toda a vida (por sinal, peças de teatro): “As mãos sujas”, de Sartre e “Os justos”, de Camus. Sobre esta, retive uma mensagem que, embora pareça contraditória, me tem acompanhado desde que a li: a justiça é uma abstração, logo, não existe; há homens justos, que procuram, ao longo da sua vida, praticar a justiça.

Em 1971 comecei a comprar, na Tó-Pequi do senhor Barrocas, a revista Mundo da Canção que, além de escrever sobre o festival Vilar de Mouros e Elton John, reproduzia letras de músicas que desconhecia, de cantores como José Mário Branco ou Adriano Correia de Oliveira, que iriam mesmo surgir em capas.

Desde muito novo que lia, na Casa do Povo, o Diário do Alentejo e a revista Flama. Em 1971, apareceu na aldeia o jornal Época, que era distribuído gratuitamente e que me chamou a atenção porque tinha um suplemento juvenil. Incentivado pela professora de Português da altura, comecei a enviar textos, inicialmente composições da escola, que foram publicados durante dois anos, mas que evoluíram depois para outros temas mais “sérios”, como “Porquê há hippies” (9.6.71), “A poluição” (8.2.72) ou sobre o barulho dos aviões alemães na pacatez da planície bejense. Até que, em 1973, descobri que o jornal pertencia à ANP, o partido único do regime e deixei de colaborar nesse suplemento. Entretanto, num espaço que comecei a frequentar em novembro desse ano – o Centro de Juventude -, lia o Diário de Lisboa, jornal oposicionista.

Um dia, em Outubro ou Novembro, entrei timidamente na redação do Diário do Alentejo, instalada na Praça da República, no mesmo prédio da livraria e da gráfica que o imprimia. Lá estavam o José Moedas e o Manuel Sousa Tavares, cujos escritos eu admirava. E, ao fundo, o diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos jornais, da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no Diário do Alentejo algo da minha autoria. Disse-me, então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a sua publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um conto com o título “A Moda”, de que retiro estas citações: “ Sorte malvada, dizia ele. Até já lhe morrera um moço na tropa e agora já lá estava outro (…) Não queria trabalhar. Os ricos que o fizessem. Nele, já ninguém punha as mãos em cima. “

Janeiro de 1974 : nestas duas frases de um jovem de 15 anos, estava, afinal, a forma como iria encarar o futuro, fruto das vivências e das circunstâncias, em parte (pequena) aqui relatadas: a aldeia, a escola, os livros e os jornais. Mal sabia esse jovem que, dois meses depois, tudo iria mudar: a Revolução.

26 de janeiro de 2024