A aldeia.
Em Janeiro de
1974 morava na aldeia. Não já na casa onde nascera 15 anos antes, mas numa
outra, distante cem metros que, naquela tarde de 1972, quando saí do autocarro,
vindo de Beja, me pareceram cem quilómetros, tal a tristeza que senti. Os meus
amigos, vizinhos, sítios de brincadeira, ficavam para trás, tal como a casa da
Rua da Estrada Nova, substituída pela da Rua das Eiras, maior, com melhores
condições e com um quintal mais amplo.
A rua onde
nasci e vivi 14 anos tinha esse nome pouco convencional, que nós abreviávamos
para “Estrada Nova”. Não era assim tão nova, tinha sido construída no final do
século XIX, tal como a ponte sobre a ribeira.
A “estrada
nova”, que ligava a aldeia a Beja, numa distância de 16 quilómetros, trouxe
inúmeras vantagens, de que se destaca a ligação à capital do distrito, passando
junto à estação ferroviária situada na linha Barreiro-Beja-Vila Real de Santo
António, o que facilitava a mobilidade da população.
A nova estrada
trouxe também outras alterações, sobretudo no urbanismo da aldeia, até aí
desenhado sobre uma pequena colina, debruçada sobre a ribeira que a abraçava. A
“nova” aldeia vai estender-se ao longo da nova via, com a construção de habitações,
incluindo mercearias, tabernas, sapateiros e ferradores. Mas, o que mais marca
a agora Rua 25 de Abril, é aquilo que podemos designar como um complexo
agroindustrial, que englobava uma fábrica de moagem, um lagar de azeite, uma
grande cavalariça, para além de vários casões de apoio à atividade agrícola.
A estrada trouxe ainda outras
mudanças, que transformaram a fisionomia da aldeia, com a construção, na nova
entrada desta, da escola e da Casa do Povo. Junto a elas nasceria ainda o campo
de futebol, tornando-se os três espaços novos polos de atração para os
habitantes de todas as idades.
Era na Casa do Povo que quase tudo se passava
(a sociedade recreativa já tinha sido extinta): desde as consultas do médico
aos bailes, da televisão ao cinema ambulante e onde se liam os jornais. Foi aí
que assisti ao mundial de 1966, aos Sete Magníficos e era no seu exterior que
esperávamos, nas noites quentes de Agosto, pela música que abria o resumo do
dia da Volta a Portugal.
Em 1974, ainda que sem balneários, iluminação
(desde crianças que corríamos atrás da bola, muitas vezes até se ver apenas
esta e os nossos vultos) ou vedação (a primeira foi feita com sulipas cedidas
pela CP e com trabalho voluntário), Santa Vitória tinha o “privilégio” de
possuir um campo de futebol (algo que muitas aldeias da região não tinham), o
que fez com que, desde 1968, a equipa da Casa do Povo participasse no
campeonato da FNAT.
E foi também em 1968 que um novo elemento veio fazer
parte da aldeia: a Barragem do Roxo. O seu enchimento foi vertiginoso,
com as suas águas a invadir quintais e
hortas, entrando até pela oficina situada junto à ponte. E era na barragem, para
onde ia de bicicleta, em grupo ou sozinho, que passava parte do meu tempo
(sobretudo nas férias escolares), na pesca ao achigã, o novo peixe aí
introduzido, mais aliciante que as pardelhas ou os bordalos da ribeira.
Em Janeiro de
1974 éramos felizes na aldeia, ainda que, devido à pobreza e à falta de
trabalho de muitos dos seus habitantes, amigos de infância e suas famílias a deixassem.
Aos poucos deixou de haver barbeiros e sapateiros, algumas “vendas” e
mercearias fecharam mesmo. “Luxos” como o abastecimento de água ou os esgotos
das habitações e a recolha do lixo não existiam. A Mina da Juliana, que
pertencia à freguesia não tinha luz elétrica (além de uma parte das casas ter
sido destruída pelas águas da barragem).
Os habitantes
da aldeia não tinham qualquer participação na escolha do presidente da Junta de
Freguesia, que era nomeado pela ditadura.
A escola.
Em Janeiro de
1974 era aluno do Liceu Nacional de Beja, no 1º Ano do Curso Complementar
(antigo 6º Ano, atual 10º Ano). Fizera, até aí, um percurso um pouco diferente
do habitual.
Com cinco anos e meio, frequentei a escola de Santa
Vitória-Gare, onde a professora era a minha tia Bia, regente escolar e que acolhia
alunos de vários locais, como os filhos dos ferroviários (a estação ficava
mesmo em frente), de trabalhadores do monte do Outeiro e de outros montes à
volta. No ano letivo seguinte, quando completei a idade legal para entrar na
escola primária, fui para a escola da aldeia onde, graças a esse ano que passei
na escola da estação, apenas estive três anos.
Em 1968 iniciou-se uma nova etapa, as aulas em Beja, que
durou até 1975. E, com ela, grandes mudanças, logo no primeiro ano. A escolha
entre ensino liceal e ensino técnico logo após a 4ª classe, fora reconhecida
pelo regime como “demasiado precoce”, tendo sido criado o “ciclo preparatório
do ensino secundário”, com duração de dois anos, iguais para todos os alunos,
tendo sido abolidos os exames de admissão. Fui, assim, aluno do primeiro ano de
funcionamento da Escola Preparatória de Mário Beirão, criada por uma portaria
de 9 de setembro de 1968 e que iria funcionar num anexo do liceu de Beja. Sinal
dos tempos, a turma era exclusivamente masculina.
Seguiram-se os três anos do Curso Geral dos Liceus (a
unificação desse ciclo, o atual terceiro, só se iniciaria em 1976), findos os
quais iniciei o Curso Complementar, na área de Letras (atual área de
Humanidades), numa turma quase exclusivamente feminina. Estes dois últimos anos
tiveram claramente duas etapas, antes e após o 25 de Abril.
Em Janeiro de 1974, além das disciplinas normais, ainda
tínhamos a OPAN, Organização Política e Administrativa da Nação e havia a
política do livro único. Como, entretanto, deixara de ser obrigatória a
frequência, “safei-me” da Mocidade Portuguesa.
Numa escola conservadora, como era o Liceu de Beja,
destacava-se a professora de Filosofia (que me tratava por “Sócrates”), jovem, recém-chegada
da faculdade e que não tinha problemas em citar Marx, além de Aristóteles ou
Platão e que chegou a levar um grupo de alunos a Lisboa, para assistir, na cave
de uma conhecida cervejaria, a uma peça de teatro (A Ceia) de um grupo com um
nome bem elucidativo: Comuna. Um dia, para a “provocar”, deixei à vista, na
aula, o livro (proibido na altura) “A História me absolverá”, de Fidel Castro, emprestado por um colega. No final da aula,
chamou-me para me repreender por andar com esse livro à mostra, dado o perigo
que isso representava. Foi essa mesma professora que me
incentivou a ler Sartre e Camus.
Os livros e os jornais.
A minha relação com os livros começou muito cedo,
tal como muitas crianças que viviam nas aldeias, através da biblioteca
itinerante da Gulbenkian, neste caso a 28, com o inestimável contributo do
senhor Alberto Veríssimo, que nos aconselhava este ou aquele livro. Após o 25
de Abril tive uma agradável surpresa, ao conhecer o seu passado antifascista,
com passagens pelo MUD e CDE e apoio a Norton de Matos e Humberto Delgado.
Em janeiro de 1974 já tinha uma pequena biblioteca, sobretudo
com livros de duas coleções de bolso, das editoras Minerva e Europa América,
comprados na SAMID durante o ano anterior (“Os homens e os outros”, de Elio
Vittorini foi adquirido em 27-7-1973, a data que nele registei). Seguindo o
conselho da professora de Filosofia, li dois dos livros que me marcaram para
toda a vida (por sinal, peças de teatro): “As mãos sujas”, de Sartre e “Os
justos”, de Camus. Sobre esta, retive uma mensagem que, embora pareça
contraditória, me tem acompanhado desde que a li: a justiça é uma abstração, logo, não existe; há homens
justos, que procuram, ao longo da sua vida, praticar a justiça.
Em 1971 comecei a comprar, na Tó-Pequi do senhor Barrocas, a
revista Mundo da Canção que, além de escrever sobre o festival Vilar de Mouros
e Elton John, reproduzia letras de músicas que desconhecia, de cantores como
José Mário Branco ou Adriano Correia de Oliveira, que iriam mesmo surgir em
capas.
Desde muito novo que lia, na Casa do Povo, o Diário do
Alentejo e a revista Flama. Em 1971, apareceu na aldeia o jornal Época, que era
distribuído gratuitamente e que me chamou a atenção porque tinha um suplemento
juvenil. Incentivado pela professora de Português da altura, comecei a enviar
textos, inicialmente composições da escola, que foram publicados durante dois
anos, mas que evoluíram depois para outros temas mais “sérios”, como “Porquê há
hippies” (9.6.71), “A poluição” (8.2.72) ou sobre o barulho dos aviões alemães
na pacatez da planície bejense. Até que, em 1973, descobri que o jornal
pertencia à ANP, o partido único do regime e deixei de colaborar nesse
suplemento. Entretanto, num espaço que comecei a frequentar em novembro desse
ano – o Centro de Juventude -, lia o Diário de Lisboa, jornal oposicionista.
Um dia, em Outubro ou Novembro, entrei
timidamente na redação do Diário do Alentejo, instalada na Praça da República,
no mesmo prédio da livraria e da gráfica que o imprimia. Lá estavam o José
Moedas e o Manuel Sousa Tavares, cujos escritos eu admirava. E, ao fundo, o
diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos
jornais, da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no
Diário do Alentejo algo da minha autoria. Disse-me,
então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a sua
publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um
conto com o título “A Moda”, de que retiro estas citações: “ Sorte
malvada, dizia ele. Até já lhe morrera um moço na tropa e agora já lá estava
outro (…) Não queria trabalhar. Os ricos que o fizessem. Nele, já
ninguém punha as mãos em cima. “
Janeiro de 1974 : nestas duas frases de um jovem de 15 anos,
estava, afinal, a forma como iria encarar o futuro, fruto das vivências e das
circunstâncias, em parte (pequena) aqui relatadas: a aldeia, a escola, os
livros e os jornais. Mal sabia esse jovem que, dois meses depois, tudo iria
mudar: a Revolução.