Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Notas d’Abril: Janeiro 1974.

 

A aldeia.

Em Janeiro de 1974 morava na aldeia. Não já na casa onde nascera 15 anos antes, mas numa outra, distante cem metros que, naquela tarde de 1972, quando saí do autocarro, vindo de Beja, me pareceram cem quilómetros, tal a tristeza que senti. Os meus amigos, vizinhos, sítios de brincadeira, ficavam para trás, tal como a casa da Rua da Estrada Nova, substituída pela da Rua das Eiras, maior, com melhores condições e com um quintal mais amplo.

A rua onde nasci e vivi 14 anos tinha esse nome pouco convencional, que nós abreviávamos para “Estrada Nova”. Não era assim tão nova, tinha sido construída no final do século XIX, tal como a ponte sobre a ribeira.

A “estrada nova”, que ligava a aldeia a Beja, numa distância de 16 quilómetros, trouxe inúmeras vantagens, de que se destaca a ligação à capital do distrito, passando junto à estação ferroviária situada na linha Barreiro-Beja-Vila Real de Santo António, o que facilitava a mobilidade da população.

A nova estrada trouxe também outras alterações, sobretudo no urbanismo da aldeia, até aí desenhado sobre uma pequena colina, debruçada sobre a ribeira que a abraçava. A “nova” aldeia vai estender-se ao longo da nova via, com a construção de habitações, incluindo mercearias, tabernas, sapateiros e ferradores. Mas, o que mais marca a agora Rua 25 de Abril, é aquilo que podemos designar como um complexo agroindustrial, que englobava uma fábrica de moagem, um lagar de azeite, uma grande cavalariça, para além de vários casões de apoio à atividade agrícola.

A estrada trouxe ainda outras mudanças, que transformaram a fisionomia da aldeia, com a construção, na nova entrada desta, da escola e da Casa do Povo. Junto a elas nasceria ainda o campo de futebol, tornando-se os três espaços novos polos de atração para os habitantes de todas as idades.

Era na Casa do Povo que quase tudo se passava (a sociedade recreativa já tinha sido extinta): desde as consultas do médico aos bailes, da televisão ao cinema ambulante e onde se liam os jornais. Foi aí que assisti ao mundial de 1966, aos Sete Magníficos e era no seu exterior que esperávamos, nas noites quentes de Agosto, pela música que abria o resumo do dia da Volta a Portugal.

Em 1974, ainda que sem balneários, iluminação (desde crianças que corríamos atrás da bola, muitas vezes até se ver apenas esta e os nossos vultos) ou vedação (a primeira foi feita com sulipas cedidas pela CP e com trabalho voluntário), Santa Vitória tinha o “privilégio” de possuir um campo de futebol (algo que muitas aldeias da região não tinham), o que fez com que, desde 1968, a equipa da Casa do Povo participasse no campeonato da FNAT.

E foi também em 1968 que um novo elemento veio fazer parte da aldeia: a Barragem do Roxo. O seu enchimento foi vertiginoso, com as suas águas a invadir quintais e hortas, entrando até pela oficina situada junto à ponte. E era na barragem, para onde ia de bicicleta, em grupo ou sozinho, que passava parte do meu tempo (sobretudo nas férias escolares), na pesca ao achigã, o novo peixe aí introduzido, mais aliciante que as pardelhas ou os bordalos da ribeira.

Em Janeiro de 1974 éramos felizes na aldeia, ainda que, devido à pobreza e à falta de trabalho de muitos dos seus habitantes, amigos de infância e suas famílias a deixassem. Aos poucos deixou de haver barbeiros e sapateiros, algumas “vendas” e mercearias fecharam mesmo. “Luxos” como o abastecimento de água ou os esgotos das habitações e a recolha do lixo não existiam. A Mina da Juliana, que pertencia à freguesia não tinha luz elétrica (além de uma parte das casas ter sido destruída pelas águas da barragem).

Os habitantes da aldeia não tinham qualquer participação na escolha do presidente da Junta de Freguesia, que era nomeado pela ditadura.

A escola.

Em Janeiro de 1974 era aluno do Liceu Nacional de Beja, no 1º Ano do Curso Complementar (antigo 6º Ano, atual 10º Ano). Fizera, até aí, um percurso um pouco diferente do habitual.

Com cinco anos e meio, frequentei a escola de Santa Vitória-Gare, onde a professora era a minha tia Bia, regente escolar e que acolhia alunos de vários locais, como os filhos dos ferroviários (a estação ficava mesmo em frente), de trabalhadores do monte do Outeiro e de outros montes à volta. No ano letivo seguinte, quando completei a idade legal para entrar na escola primária, fui para a escola da aldeia onde, graças a esse ano que passei na escola da estação, apenas estive três anos.

Em 1968 iniciou-se uma nova etapa, as aulas em Beja, que durou até 1975. E, com ela, grandes mudanças, logo no primeiro ano. A escolha entre ensino liceal e ensino técnico logo após a 4ª classe, fora reconhecida pelo regime como “demasiado precoce”, tendo sido criado o “ciclo preparatório do ensino secundário”, com duração de dois anos, iguais para todos os alunos, tendo sido abolidos os exames de admissão. Fui, assim, aluno do primeiro ano de funcionamento da Escola Preparatória de Mário Beirão, criada por uma portaria de 9 de setembro de 1968 e que iria funcionar num anexo do liceu de Beja. Sinal dos tempos, a turma era exclusivamente masculina.

Seguiram-se os três anos do Curso Geral dos Liceus (a unificação desse ciclo, o atual terceiro, só se iniciaria em 1976), findos os quais iniciei o Curso Complementar, na área de Letras (atual área de Humanidades), numa turma quase exclusivamente feminina. Estes dois últimos anos tiveram claramente duas etapas, antes e após o 25 de Abril.

Em Janeiro de 1974, além das disciplinas normais, ainda tínhamos a OPAN, Organização Política e Administrativa da Nação e havia a política do livro único. Como, entretanto, deixara de ser obrigatória a frequência, “safei-me” da Mocidade Portuguesa.

Numa escola conservadora, como era o Liceu de Beja, destacava-se a professora de Filosofia (que me tratava por “Sócrates”), jovem, recém-chegada da faculdade e que não tinha problemas em citar Marx, além de Aristóteles ou Platão e que chegou a levar um grupo de alunos a Lisboa, para assistir, na cave de uma conhecida cervejaria, a uma peça de teatro (A Ceia) de um grupo com um nome bem elucidativo: Comuna. Um dia, para a “provocar”, deixei à vista, na aula, o livro (proibido na altura) “A História me absolverá”, de Fidel Castro, emprestado por um colega. No final da aula, chamou-me para me repreender por andar com esse livro à mostra, dado o perigo que isso representava. Foi essa mesma professora que me incentivou a ler Sartre e Camus.

Os livros e os jornais.

A minha relação com os livros começou muito cedo, tal como muitas crianças que viviam nas aldeias, através da biblioteca itinerante da Gulbenkian, neste caso a 28, com o inestimável contributo do senhor Alberto Veríssimo, que nos aconselhava este ou aquele livro. Após o 25 de Abril tive uma agradável surpresa, ao conhecer o seu passado antifascista, com passagens pelo MUD e CDE e apoio a Norton de Matos e Humberto Delgado.

Em janeiro de 1974 já tinha uma pequena biblioteca, sobretudo com livros de duas coleções de bolso, das editoras Minerva e Europa América, comprados na SAMID durante o ano anterior (“Os homens e os outros”, de Elio Vittorini foi adquirido em 27-7-1973, a data que nele registei). Seguindo o conselho da professora de Filosofia, li dois dos livros que me marcaram para toda a vida (por sinal, peças de teatro): “As mãos sujas”, de Sartre e “Os justos”, de Camus. Sobre esta, retive uma mensagem que, embora pareça contraditória, me tem acompanhado desde que a li: a justiça é uma abstração, logo, não existe; há homens justos, que procuram, ao longo da sua vida, praticar a justiça.

Em 1971 comecei a comprar, na Tó-Pequi do senhor Barrocas, a revista Mundo da Canção que, além de escrever sobre o festival Vilar de Mouros e Elton John, reproduzia letras de músicas que desconhecia, de cantores como José Mário Branco ou Adriano Correia de Oliveira, que iriam mesmo surgir em capas.

Desde muito novo que lia, na Casa do Povo, o Diário do Alentejo e a revista Flama. Em 1971, apareceu na aldeia o jornal Época, que era distribuído gratuitamente e que me chamou a atenção porque tinha um suplemento juvenil. Incentivado pela professora de Português da altura, comecei a enviar textos, inicialmente composições da escola, que foram publicados durante dois anos, mas que evoluíram depois para outros temas mais “sérios”, como “Porquê há hippies” (9.6.71), “A poluição” (8.2.72) ou sobre o barulho dos aviões alemães na pacatez da planície bejense. Até que, em 1973, descobri que o jornal pertencia à ANP, o partido único do regime e deixei de colaborar nesse suplemento. Entretanto, num espaço que comecei a frequentar em novembro desse ano – o Centro de Juventude -, lia o Diário de Lisboa, jornal oposicionista.

Um dia, em Outubro ou Novembro, entrei timidamente na redação do Diário do Alentejo, instalada na Praça da República, no mesmo prédio da livraria e da gráfica que o imprimia. Lá estavam o José Moedas e o Manuel Sousa Tavares, cujos escritos eu admirava. E, ao fundo, o diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos jornais, da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no Diário do Alentejo algo da minha autoria. Disse-me, então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a sua publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um conto com o título “A Moda”, de que retiro estas citações: “ Sorte malvada, dizia ele. Até já lhe morrera um moço na tropa e agora já lá estava outro (…) Não queria trabalhar. Os ricos que o fizessem. Nele, já ninguém punha as mãos em cima. “

Janeiro de 1974 : nestas duas frases de um jovem de 15 anos, estava, afinal, a forma como iria encarar o futuro, fruto das vivências e das circunstâncias, em parte (pequena) aqui relatadas: a aldeia, a escola, os livros e os jornais. Mal sabia esse jovem que, dois meses depois, tudo iria mudar: a Revolução.

26 de janeiro de 2024