Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Vitória(s) de Pirro.

 

“ Conta-se que, a uma pessoa que o felicitava pelo seu triunfo [contra os romanos], Pirro [séc. IV/III a.C] respondeu: ‘Se alcançarmos outra vitória semelhante a esta, estaremos irremediavelmente perdidos. “
Estas palavras são de Plutarco (séc. I/II), no volume da sua obra Vidas Paralelas, dedicado ao rei do Épiro e da Macedónia e a Caio Mário (séc. II/I a.C), general e político romano.
Ao lermos, nas últimas semanas, alguns comentários sobre os concursos para a recuperação do IP8, lembramo-nos desta vitória militar, com uma significativa diferença: enquanto Pirro evoca a sua vitória prenunciando derrotas, esses comentários, ainda que se refiram à “… maior obra de estradas do PRR…”, não fazem esquecer derrotas passadas, no que às acessibilidades diz respeito.
Começando pelo IC27, que se inicia em Castro Marim e que deveria terminar no IP2, perto da Trindade, numa distância de cerca de cem quilómetros, servindo, não só esse concelho algarvio, como também os de Alcoutim, Mértola e Beja, melhorando as ligações para Lisboa e para o Norte, podemos afirmar que se trata de uma obra que foi deixada para as calendas gregas. Em agosto de 2005, ano em que foi concluída a primeira fase (33 quilómetros), foi apresentado o estudo de impacto ambiental, que incluía várias hipóteses do troço a construir até ao IP2 (esse estudo fora encomendado em 2001 pelo valor de 83 mil contos, 610 mil euros em 2023). Em
2012, sete anos depois, sem qualquer obra efetuada, uma fonte do governo de então anunciava no Expresso que o troço que faltava “encontra-se assegurado pela EN 122” e que “face à reduzida procura (…) considera-se que a infraestrutura rodoviária existente responde às necessidades existentes (sic)”.
Ou seja, revertia-se uma decisão há muito tomada e assim continua até aos dias de hoje, tornando-se mesmo num não-assunto, face à ausência de debate sobre o tema. Entretanto, continuam os acidentes na EN 122.
A segunda derrota tem a ver com o fim das ligações ferroviárias diretas entre Beja e Lisboa. Desde 1864 (data da chegada do caminho-de-ferro a Beja) até 2004, a ligação era feita de forma indireta, já que a linha ia até ao Barreiro, onde se fazia, por barco, o transbordo para Lisboa. Em 2004, após a entrada em funcionamento da linha ferroviária na Ponte 25 de Abril (em 1999), iniciaram-se as ligações diretas entre Beja e Lisboa, em comboios intercidades rápidos e confortáveis. Em pouco mais de duas horas chegava-se à capital, fugindo ao desagradável transbordo. Diga-se que este benefício, além dos habitantes de Beja, abrangia os de Cuba, Alvito e Viana do Alentejo, bem como dos concelhos limítrofes.
Pois bem, quando pensávamos que o progresso tinha finalmente chegado, eis que, em maio de 2010, com o início de obras de modernização (incluindo a eletrificação) do trecho entre Bombel e Évora, essa ligação é suspensa, para não mais voltar. Em seu lugar, a automotora até Casa Branca, onde se faz (novamente) um transbordo, este para o comboio que vem de Évora. Ou seja, Beja, de estação central na ligação Algarve-Barreiro/Lisboa, deu lugar à estação inicial de um novo ramal, para uma ligação regional eufemisticamente designada por “intercidades”.
Para além desta desvalorização da ferrovia, já no final de 1989 tinha sido encerrado o Ramal de Moura e, no final de 2011 encerrada a ligação Beja-Funcheira, terminando assim com a ligação ferroviária ao Algarve, inaugurada em 1 de julho de 1889.
Não cabe neste artigo a descrição de tudo o que se passou desde o dia 7 de janeiro de 2011, quando a CP anunciou, em comunicado para a LUSA, o fim da ligação direta Beja-Lisboa e o novo transbordo, a realizar em Casa Branca. A partir de uma reunião pública realizada no dia 18 desse mês, na Biblioteca Municipal, deu-se início a um movimento cívico ímpar em Beja, que mobilizou, sob as mais diversas formas, milhares de cidadãos, para a defesa da continuação ligação ferroviária direta.
As mais recentes notícias não auguram melhorias tão cedo. Deixando de lado o surreal anúncio de uma linha de alta velocidade que passará por Beja… em 2050 (sic), a eletrificação do troço Beja-Casa Branca já vai na sua segunda versão, com a conclusão das obras, inicialmente prevista para finais de 2027, “atrasada” em mais um ano. Mas, como recentemente foi título no jornal Público, “Ferrovia 2020 com menos de metade do investimento executado”, significando isto que, dos 24 troços com obras previstas neste plano, apenas 6 estão concretizados, num atraso de… quase 27 mil dias (“… equivalente a 76 anos …”). Isto significa que eletrificação lá para finais de 2028 poderá não passar de mais um sonho adiado.
Terceira derrota: a A26, Sines-Beja, com ligação, em Grândola Sul, à A2, Lisboa-Algarve. Tal como aconteceu com a conclusão do IC27, também a A26 irá para o caixote do lixo, não faltando também nesta história o seu momento surreal, hilariante e criativo, quando um alto responsável político regional afirmou, no rescaldo de uma reunião com o ministro Pedro Nuno Santos, que não teremos para já a A26, mas sim “… uma semi-autoestrada (…) o que é ótimo para nós …” (sic). 
Tal como no anúncio da eletrificação, também da requalificação do IP8 (a que o autarca atrás se referia) nãocomeçou da melhor maneira: o concurso do troço da EN 259, entre a rotunda da Malhada Velha e Ferreira do Alentejo já vai na segunda versão, enquanto o concurso do troço da EN 121, entre Ferreira e Beja ainda não foi lançado. Com o primeiro a prever obras com a duração de 540 dias, talvez o “novo” IP8 (que, abono da verdade, devia rebatizado como IC) consiga estar concluído até final de 2026, quando terminar o prazo do PRR, onde se integra (se, por milagre, não houver derrapagens dos prazos). Entretanto, ao lado desta “semi-autoestrada”, ficarão campos esventrados e uma verdadeira “arqueologia rodoviária”, onde não faltam obras de arte (no seu duplo significado), algumas delas decoradas com ninhos de cegonha. Uma verdadeira “arte na planície”, com milhões de euros deitados fora (aproveitam-se as variantes de Figueira dos Cavaleiros e Beringel, há muito aguardadas), em expropriações e obras inacabadas ad aeternum. Para concluir, como corolário destas “vitórias de Pirro”, fica a história fica a tragédia (ou comédia?) dos 14 quilómetros da A26 construídos entre a A2 e a nova rotunda com a EN 121, que estiveram mais de dois anos por abrir, por falta de portagens, perante o ensurdecedor silêncio de responsáveis políticos regionais e, onde, mais uma vez, tiveram de ser algumas iniciativas de cidadãos a pôr o dedo na ferida e a denunciar tão absurdo atraso.

14 de julho de 2013


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Museu Jorge Vieira – proposta para reflexão/debate


1.       Ao longo dos anos, a cidade de Beja foi sendo equipada com um conjunto de equipamentos culturais municipais que, juntamente com outros (públicos ou associativos), criaram as condições para a consolidação de uma política cultural coerente e consistente. Por ordem cronológica, a Casa da Cultura, a Galeria dos Escudeiros, a Biblioteca Municipal, a Casa das Artes/Museu Jorge Vieira e o Pax Julia são os equipamentos-âncora da rede atrás mencionada.

2.       No caso do Museu Jorge Vieira, que nasceu na sequência da doação de um valioso acervo de obras do artista – cerâmica e desenho – juntamente com a oferta das obras de arte pública de grandes dimensões, veio criar mais condições para que Beja – cidade, concelho e região – se pudesse projetar no panorama do turismo cultural nacional, com uma forte aposta nas artes plásticas (basta consultar o livro publicado em 2005, aquando do 10º aniversário do museu, para constatar este facto).

3.       As dificuldades estruturais do edifício adaptado para receber o museu revelaram-se ao longo dos anos, pelo que, quando surgiu a oportunidade de recuperar dois edifícios degradados – a sede do Clube Bejense, na Rua do Sembrano e o imóvel municipal, na Praça da República – poder-se-ia pensar que um outro poderia acolher, finalmente, o museu, dado que reuniam potencialidades para tal.

4.       Só que, no primeiro (cuja candidatura tinha a designação de “Casa Criativa”) foi instalado o Centro UNESCO e no segundo (Centro de Arqueologia e Artes) reina ainda a incerteza. Ambas as situações têm uma mesma explicação: a falta de um programa das obras de requalificação, que definisse de forma clara qual o uso futuro do edifício a recuperar e orientasse os projetos nessa direção.

5.       Então, se no caso do primeiro, parece ser um facto consumado, em relação ao edifício da Praça da República, torna-se necessário uma reflexão e uma discussão aberta e descomplexada sobre o seu futuro, nomeadamente sobre a possibilidade de instalar de forma definitiva o Museu Jorge Vieira nesse local, coexistindo com um espaço museológico que integre parte do espólio encontrado nas escavações do Fórum, enriquecendo-o, após a sua requalificação (algo que não é antagónico, como se observa, por exemplo, no Museu Picasso, em Málaga).

6.       Nesse espaço seriam instaladas as coleções de escultura e desenho, um espaço para artistas locais e um outro para exposições temporárias. Tudo isto, acompanhado, claro pela aposta na dinamização do próprio museu, em todas as suas valências.

7.       Por outro lado, existem ainda outras razões que levam à realização dessa reflexão:

7.1. A comemoração do 100º aniversário do nascimento de Jorge Vieira, com a dignidade a memória deste grande artista amigo de Beja merece. Além da instalação do museu num local apropriado, a implementação da identificação das duas obras de arte, na rotunda à entrada da cidade e junto à Pousada de São Francisco.

7.2. A integração do museu na Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, criada há dias  https://files.dre.pt/1s/2021/05/09100/0001700021.pdf https://www.dgartes.gov.pt/pt/noticia/5441 , o  que o prestigiaria, ao lado, por exemplo, do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (Bragança), Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso (Chaves), Centro Internacional das Artes José De Guimarães (Guimarães), Museu Cargaleiro (Castelo Branco), Museu de Arte Contemporânea/Coleção António Cachola (Elvas), entre outros.

7.3. A aposta forte na arte contemporânea/coleção Jorge Vieira, como fator determinante para a promoção do Turismo Cultural, ao lado da aposta nos patrimónios histórico, cultural e natural.

Sobre este aspeto e, voltando à hipótese Centro de Arqueologia e Artes, será interessante refletir sobre uma questão: o que é mais importante para o Turismo Cultural em Beja? Grandes exposições temporárias, como a Cangiante ou, agora, “A Arte Que É – III” (sem pôr em causa a sua qualidade) ou a instalação da obra de um dos mais importantes artistas nacionais (não será por acaso que são dele duas emblemáticas obras de arte pública em Lisboa, na Praça do Município e no Parque das Nações, respetivamente)?

Como contributo para a reflexão/debate agora propostos, anexo dois artigos de opinião publicados no Diário do Alentejo, em março de 2019 e setembro de 2020, respetivamente.

               Beja, 24 de julho de 2022                                                                       

         José Filipe Murteira dos Santos


                                                                     





                                                                          






sexta-feira, 29 de outubro de 2021

EN 18 - viagem entre Beja e Ervidel

Perto de Santa Vitória - Fevereiro 2020 

No passado mês de julho teve lugar, na Guarda, o lançamento da rota Da Serra à Planície, visando a divulgação e a promoção da Estrada Nacional 18, que começa nessa cidade beirã e termina em Ervidel, onde se encontra com a tão falada EN2. Entre as duas encontram-se algumas semelhanças e diferenças. A sua extensão (as duas maiores do País), embora a EN2 tenha quase o dobro da EN18 (740 e 388 quilómetros, respetivamente); a sua localização no interior, ligando cidades, vilas e aldeias, algumas destas perdidas e esquecidas nas serras e planícies; a sua integração em novas vias (IP3 ou IP2), requalificando e alterando significativamente vários troços; o seu potencial turístico-cultural, como refere o Clube Escape Livre, o mentor dessa rota :  “São 388 quilómetros de aventura, cultura, história e sabores tradicionais que ligam 14 municípios, 5 Aldeias Históricas e 2 regiões vitivinícolas”.

Como atrás referimos, muitos quilómetros da EN2 estão integrados em IP, o que faz com, por exemplo, entre Évora e Ervidel, apenas dois pequenos troços, incluindo o de Beja a esta localidade, correspondam realmente à antiga estrada. Só que, este último (tal como outras estradas, nacionais ou municipais) sofreu, nos últimos anos, profundas alterações nas paisagens circundantes, face às transformações verificadas na agricultura da região, após a construção da Barragem do Alqueva.

Sem entrarmos em outros temas, alguns polémicos e cujas consequências não é possível ainda aferir, fiquem-nos apenas pelas alterações atrás referidas. Para tal, nada melhor que uma viagem nos últimos vinte e um quilómetros da EN18, entre Beja e Ervidel.

Se, entre Beja e o Penedo Gordo, a paisagem é diversificada, vislumbrando-se dois dos novos olivais e milheirais, mas também culturas tradicionais e alguns montes espalhados pelo território, passado o Monte da Almocreva (que desolação!) inicia-se a nova paisagem, onde predomina o amendoal, uma parte já em plena exploração, outra mais recente e outra ainda por plantar. Daqui a alguns meses, será essa a única visão, a partir da estrada, ladeada por amendoeiras ao longo de vários quilómetros, em que toda a paisagem circundante desaparece da vista, nomeadamente o Monte da Chaminé do Passarinho e a Estação de Santa Vitória e mesmo alguns pequenos montados (sobreviventes da Campanha do Trigo do Estado Novo) foram “invadidos” por essa nova espécie, com os sobreiros quase a desaparecer da vista. E, se um dia regressar a ligação ferroviária Beja-Funcheira, torna-se quase impossível vislumbrar, a partir da estrada, qualquer composição como, por exemplo, a conhecida automotora verde e branca, que atravessava as searas de trigo ou os campos de girassol.

O amendoal à direita é depois “acompanhado” à esquerda pela mancha de olival do Monte do Outeiro, olival que vamos encontrar de novo perto de Santa Vitória. Neste caso é a igreja da aldeia que irá desaparecer da vista, a partir da estrada e, não fosse a intervenção da Junta de Freguesia que levou a que fosse demarcada uma faixa de proteção, esse olival estender-se-ia até aos muros da Casa do Povo ou do campo de futebol.

Entre Santa Vitória e Ervidel encontramos uma novidade nesta nova paisagem alentejana: os pomares, de um lado e do outro da estrada. Finalmente, os últimos quilómetros da EN18 voltam a ser ocupados por uma mancha contínua de olival, que se estende até à EN2 que, vinda do Norte irá até Faro, num encontro muito pouco feliz, do ponto de vista visual.

Pela descrição atrás feita, não será difícil adivinhar que o tradicional bucolismo dos campos alentejanos, onde as suas cores se alternavam ao longo do ano (o castanho, o vermelho e o amarelo), está a dar lugar a uma monótona e monocromática paisagem, que “apaga” da vista quase tudo à sua volta, tal como os eucaliptos “secam” tudo os rodeia. Um cartão de visita muito pouco apetecível, para quem parte da Guarda, à procura dos recantos que tornam Portugal tão apetecível”, como se escreve na apresentação da rota.

E, já que atrás nos referimos à estação ferroviária de Santa Vitória, entaipada há alguns anos, recordemos o anúncio feito em setembro, pela Secretária de Estado do Turismo, da intenção do governo em vender, ao abrigo do programa REVIVE, algumas das estações abandonadas, como essa ou o apeadeiro do Penedo Gordo. Neste momento já decorre o concurso para a venda de seis dessas estações, incluindo a de Represas (ou melhor, das suas paredes, o que dela resta).

Numa primeira abordagem ao assunto, até encontrámos alguns aspetos positivos, não só pelo aproveitamento de edifícios lindos, como é o da estação de Santa Vitória, mas também pela possibilidade de o caderno de encargos do concurso contemplar o apoio dessa nova estrutura turística a uma eventual retoma da ligação entre Beja e a Funcheira, não deixando completamente de lado essa função (a exemplo do que acontece, por exemplo, de certos postos dos CTT que funcionam em mercearias).

Só que, numa abordagem mais detalhada, o que encontramos? Uma estação completamente “cercada” pelos novos amendoais, paisagem pouco apetecível para quem queira passar uns dias no chamado “Alentejo profundo”. Paisagem que estende ao longo das ribeiras e dos barrancos, que tomou conta dos montados, que aterrou lagoas e charcas e que irá acompanhar alguém que queira ir, a pé ou de bicicleta, da estação até Pisões ou à Albufeira dos Cinco Reis. Ou seja, algo que levará a potenciais interessados a pensar duas vezes antes de tomar a decisão de adquirir o edifício em causa, face às alterações verificadas nos últimos anos nos afamados “barros de Beja”, em nome de um progresso necessário, mas de difícil conciliação com o meio ambiente e a biodiversidade, tão ricos, diversificados e belos.

29 de outubro 




 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Presente envenenado

 

 
Casa da Cultura

Foi há pouco mais de três meses (no dia 2 de abril) que se comemorou o 45º aniversário da aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP), que substituiu a de 1933, a que suportou a ditadura derrubada em 25 de abril de 1974.

De entre os vários artigos que desmantelaram a constituição do Estado Novo, havia um (o 236º) que estabelecia a nova forma de organização do território, expressa no seu número um: “No continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”.

Se, sobre as duas primeiras, com mais ou menos problemas, o estipulado na CRP tem sido cumprido, o mesmo já não se passa com o estabelecimento das regiões. Sobre as várias vicissitudes por que tem passado este processo, não me vou pronunciar agora; sobre a regionalização, tive oportunidade de dar a minha opinião, nas páginas do Diário do Alentejo, no dia 24 de novembro de 2017.  http://notasaesquerda.blogspot.com/2021/07/e-se-falassamos-sobre-regionalizacao.html

A implementação desta nova estrutura territorial implicaria, obviamente, uma redistribuição de atribuições e competências, acompanhadas, claro, dos meios humanos e financeiros para fazer face ao novo quadro legal. Nenhuma autarquia do país – freguesia ou município – seria capaz de fazer face aos novos desafios com os meios de que dispunha em abril de 1974.

Daí que, ao longo dos anos se tenha assistido a essa transferência, do poder central para o local, incluindo ainda a passagem de competências dos municípios para as freguesias. Quanto às transferências para as regiões, como estas não existem, o que se tem verificado são transferências do poder central para os seus órgãos desconcentrados (como no caso da gestão de alguns museus nacionais que passou para as direções regionais de cultura). Um aparte para mencionar uma situação um pouco aberrante, que foi a criação, no Plano Rodoviário Nacional (versão de 1998) das “estradas regionais”, talvez inspiradas nas “carreteras autonómicas” dos nossos vizinhos, prevendo a criação, a curto/médio prazo das regiões no nosso país. Por exemplo, o troço Aljustrel-Castro Verde, recentemente requalificado, afinal não integra a já mítica EN2, mas sim a (quase desconhecida) ER2.

No caso das transferências do poder central para os municípios, o mínimo que se pode dizer é que tem sido um processo atribulado, não isento de críticas por parte de muitos autarcas, que vêm em algumas dessas transferências, não um reforço da intervenção do poder local, mas sim o descartar de serviços e pessoas dos vários ministérios para as autarquias, numa primeira fase com a aprovação destas, a partir de 2022, por imposição.

Entre as várias áreas, destacam-se, sem dúvida, as transferências na Educação, na Saúde e na Ação Social. Se no caso da primeira em 2021 já havia 123 municípios que aceitaram as novas competências, na segunda foram apenas 20 (um dos quais o de Portel), segundo dados da DGAL. No caso da Ação Social, cujo processo está mais atrasado, só em 2022 é que essa transferência se verificará. Apenas como indicação refiram-se algumas nas competências que passarão para as autarquias nas duas últimas áreas: “… o acompanhamento dos beneficiários do rendimento social de inserção(…)a conservação dos imóveis [da saúde], a gestão dos assistentes operacionais, o pagamento de rendas, limpeza e desinfeção, fornecimento de serviços essenciais e arranjos exteriores”. (LUSA, 30 março 2021). Por exemplo, no site da CM de Portel já podemos ver que tem sob a sua alçada, além do centro de saúde, mais sete extensões no concelho.

Perante este acréscimo de competências, não admira, por isso, a contestação que alguns autarcas e a própria ANMP têm vindo a manifestar. Por exemplo, Rui Moreira já terá feito contas e, no caso do Porto, só a Ação Social irá significar um aumento de despesa da autarquia de 7 milhões de euros, já que, para uma despesa nessa área de 9 milhões, irá apenas receber cerca de 2 milhões (JN, 3 maio 2021). Na Educação, é a própria ANMP a denunciar, num inquérito que fez, que “… as Câmaras Municipais estão a gastar em educação o dobro das verbas que o Estado dá (…) As autarquias acusam o governo de calcular em baixa o valor a atribuir. Em 2020, mais de 180 municípios gastaram com educação 160 milhões de euros a mais do que os cerca de 100 milhões que receberam do Estado (…) a associação acusa o governo de estar a fazer as contas por baixo nos últimos anos e de não cumprir os mínimos” (TSF, 5 maio 2021).

Depois, há ainda algumas particularidades que, muitas vezes não são tidas em conta e que não se refletem nas verbas a atribuir às autarquias. Vejamos o caso de Beja, por exemplo. Fruto de circunstâncias várias que não interessa aqui e agora abordar, a rede de equipamentos desportivos na cidade é quase toda ela municipal (situação que vem até de antes do 25 de abril), com todos os custos de funcionamento a isso inerentes. Em outros municípios (Évora, por exemplo), é o contrário, a grande maioria dos equipamentos – estádios, pavilhões, piscina coberta – pertence aos clubes, sendo municipais uma pequena parte. A própria pista de atletismo inaugurada em 2016, foi construída pelo IPDJ (a de Beja, que data de 1999, foi da responsabilidade da autarquia).

 
Complexo Desportivo Fernando Mamede   
                                       
                                                                             Centro Social do Lidador

Para além destes equipamentos, refiram-se também os culturais, de cuja rede Beja deve sentir um legítimo orgulho, desde a Casa da Cultura, à Biblioteca Municipal, ao Pax Julia, ao Museu Jorge Vieira e, mais recentemente, ao Centro Unesco ou ao Centro de Arqueologia e Artes.

E, se no caso dos equipamentos desportivos, são os clubes os seus grandes dinamizadores, no caso dos culturais, não obstante o bom trabalho dos agentes e associações dessa área, tem de ser a autarquia a grande dinamizadora de uma política cultural coerente e consistente (algo que não se tem visto no mandato que está a terminar), com a afetação dos meios humanos, financeiros e técnicos que tal acarreta, acrescidos dos necessários em outras áreas, como a limpeza urbana ou a manutenção das ruas e estradas municipais.

Sem as devidas contrapartidas financeiras, o que espera os autarcas que vão ser eleitos em 26 de setembro não é nada animador, já que a partir de 2022 irão receber um pacote de novas competências, nas áreas atrás indicadas e em outras que, mais do que um sinal da importância reconhecida ao poder local e aos seus atores (funcionários incluídos), mais não é do que um presente envenenado que o poder central lhes atribui, em nome de uma descentralização apregoada, mas pouco executada.

Uma nota final, ainda em relação a Beja. Não deixa de ser estranho (no mínimo) que a área em que a autarquia recebeu mais competências em 2021 – a Educação – seja a única que não tenha, até ao momento, dirigente intermédio nomeado, ao contrário de todas as outras em que decorreram concursos na mesma altura. Numa área tão complexa, não se compreende que tal não tenha ainda acontecido.

23 julho





segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pequeno passo.

   
O que temos : as 450 a diesel (com mais de 50 anos) - Foto: Nelso Silva
 







Na semana que passou a CP deu-nos a conhecer (finalmente) duas notícias positivas para Beja e para a região. A primeira foi o início de mais uma ligação de Beja a Lisboa (com o inevitável transbordo em Casa Branca) e a segunda o reatar das ligações entre Beja e Évora, estas suspensas (tal como a ligação direta a Lisboa) há mais de onze anos).

Notícias positivas, porque quebram mais de uma década de ostracismo a que essa empresa pública nos tem votado e que começou em 2011, quando Beja deixou de fazer parte de uma linha (na qual era uma componente importante), para passar a ser um ramal, num claro sinal de abandono, em que os principais responsáveis são os governos que, desde esse ano, pouco ou nada têm feito para repor o que existiu entre 2004 e 2010: uma ligação direta a Lisboa, após 140 anos de um outro transbordo, este no Barreiro.

Estas duas notícias não fazem, por isso, esquecer o mais importante e que, pelas últimas informações, ainda demorará a chegar e pelo qual nos temos batido desde que esta ligação foi interrompida para a eletrificação da linha de Évora.

Por um lado, a “Modernização do troço Casa Branca-Beja da Linha do Alentejo, incluindo eletrificação e instalação de sistemas de sinalização e telecomunicações “ (PNI 2030), cuja conclusão estava prevista para 2025 e que acaba de dar o primeiro passo, com o lançamento do concurso para os estudos e projetos, já foi “empurrada” para 2027 : “O lançamento da empreitada será feito em 2024 e a obra decorrerá em 2025, 2026 e, porventura, ainda no início de 2027”, afirmou o presidente da IP, António Laranjo, durante uma audição na Assembleia da República” (Agência LUSA, 8 de junho).

Por outro lado, a aquisição de comboios híbridos (a diesel e eletricidade), que serviriam, entre outros objetivos, para ligar Beja a Lisboa enquanto a linha não estivesse completamente eletrificada, cujo concurso foi lançado em janeiro de 2019 e que previa a entrega dos primeiros em 2023, estava, há um mês, “parado” no Tribunal de Contas, o que iria atrasar em um ano (pelo menos) essa entrega (de 2023 para o final de 2024).

Esta tinha sido, aliás, uma hipótese colocada pelas delegações do movimento de cidadãos criado em janeiro de 2011, em reuniões realizadas com os secretários de estado Correia da Fonseca (25 de março de 2011) e Sérgio Monteiro (29 de julho de 2011): a possibilidade de manter comboios diretos Beja-Lisboa, a diesel até Casa Branca e elétricos daqui até Lisboa. Ambos responderam que não era possível, com o argumento que a CP não dispunha desse tipo de comboios. E, se no caso do primeiro, foi ainda referido que iria ver com a CP a hipótese de manter pelo menos duas ligações diárias (a diesel), o segundo informou que iria tentar integrar a eletrificação da linha no plano ferroviário que o seu governo ia fazer, para incluir no Portugal 2020. Ora, como se veio a verificar, nem uma nem outra hipótese se vieram a concretizar. E nem a mudança de governo, no final de 2015, veio a alterar a situação, já que o novo plano – Ferrovia 2020 – apresentado em fevereiro de 2016, manteve as opções tomadas pelo anterior (o PETI3+), excluindo a eletrificação do troço Beja-Casa Branca.

Sabia que...em Junho de 1968, quando a CP adquiriu as 10 locomotivas diesel-elétricas English Electric série 1801-1810, estas eram as mais velozes à época? in https://www.facebook.com/CP/


Posto isto, a questão que se coloca é: não há mais nada a fazer senão esperar pelas datas indicadas, com os inevitáveis novos atrasos? Mais três anos (pelo menos) de transbordos em Casa Branca, à chuva, ao frio e ao calor extremos, com viagens desconfortáveis em automotoras com 55 anos (as “célebres” 450)?

Há, mas para isso não basta o justo protesto dos cidadãos indignados e dos seus movimentos (tantas vezes ignorados ou vilipendiados), terá de haver uma voz única, destes, de autarcas, de deputados, das chamadas “forças vivas” locais e regionais, no sentido de se chegar a uma solução que não espere por 2024 ou 2027. Uma voz que se faça ouvir pelo governo para que, por uma vez, haja a necessária vontade política que tem faltado nos últimos onze anos e que leve a CP a resolver esta situação de discriminação das populações alentejanas.

Uma solução que poderá passar, por exemplo, pelo aluguer à RENFE de dois comboios híbridos (que levam entre duas e oito carruagens), do género dos que essa empresa usa há anos para fazer a ligação Madrid-Galiza e que poderiam realizar três ligações diárias Beja-Lisboa, diretas e nos dois sentidos. Afinal, esta solução está neste momento em vigor: até ao final de 2022 a CP tem um contrato de aluguer de 24 automotoras diesel, pelo qual paga à RENFE 8,3 milhões de euros por ano. Caso a empresa espanhola pudesse fornecer esses dois comboios, porque não incluí-los nesse pacote, renegociando o contrato?

Comboio híbrido Madrid-Galiza. Foto : Renfe

Para que essa vontade política exista, é preciso uma unidade, a nível local e regional que, infelizmente não tem existido, não obstante os vários apelos públicos, como os que, por exemplo, tenho feito nas páginas dos jornais da nossa região e que, para concluir, relembro:

“… seria muito bom vermos os autarcas de Beja, Cuba, Alvito, Viana do Alentejo, Vendas Novas, unidos, ao lado dos cidadãos que lutam pelas ligações directas a Lisboa, por comboio…” (Correio Alentejo, 8 junho 2012).

“ Agora que a “poeira” eleitoral assenta e que se vai dar início a um novo ciclo político, com um novo Parlamento e um novo Governo, seria bom que os três deputados eleitos por Beja [Pedro do Carmo, João Ramos e Nilza de Sena] se unissem e, deixando para trás naturais divergências, elaborassem um documento, curto mas incisivo, que se concretizasse num projeto de resolução ou numa recomendação, com dois objetivos “mínimos”: a eletrificação da linha Beja/Casa Branca e a retoma das obras da A26, entre Beja e Santa Margarida do Sado” (Diário do Alentejo, 9 outubro 2015).

E, a propósito desta última (pelos vistos atirada de novo para o esquecimento), transcrevo o que escrevi na citada crónica de junho de 2012: “… ou ainda os [autarcas] de Beja, Ferreira, Grândola, Alcácer, Santiago e Sines, juntos pela A26, que tão tarde arrancou e que vai parando e avançando aos soluços...”

Embora esta crónica seja sobre comboios, aqui fica de novo o apelo a estes eleitos para que, mais uma vez, não fiquemos para trás e se conclua a inacabada A26, o que, pelas últimas notícias, está em risco.

18 junho


sexta-feira, 26 de março de 2021

Participar

 

                                                             Foto : Tiago Petinga/Lusa

“Um dos défices que identifico na sociedade portuguesa é o da cidadania participativa. Inquietemo-nos. Participemos“ (1)

Daqui a um mês comemoramos (ainda que com as necessárias restrições) mais um aniversário do 25 de Abril. Três anos depois, será uma comemoração especial (e, esperemos, sem condicionantes, para que tenha a devida dimensão e a merecida dignidade): o Cinquentenário. Em 2024, pelo segundo ano, o nosso País festejará mais anos de Liberdade do que aqueles que viveu em ditadura.

Para além das indiscutíveis mudanças e conquistas trazidas por essa data libertadora, há algumas áreas que ainda têm um longo caminho a percorrer. Refiro, entre outras, a regionalização e a participação cidadã. Sobre estes dois temas já tive oportunidade de escrever no Diário do Alentejo (24 de novembro de 2017 e 12 de julho de 2019, respetivamente). Volto à segunda, muito pela notícia da “despromoção” da nossa Democracia no Democracy Index, estudo anual da revista The Economist: de “país totalmente democrático” em 2019, para “democracia com falhas” em 2020.

Sem querer escalpelizar esta situação, abordo apenas um parâmetro que até manteve a mesma pontuação (por sinal muito pouco confortável), a Participação Política (6,11 em 10), muito longe da Noruega ou da Suécia (10) e igual a países como o Bangladesh e ou o Lesoto.

Não repetindo o que já escrevi em 2019, onde enumero alguns dos fatores que, em minha opinião, contribuem para essa tão baixa participação dos cidadãos na “coisa pública”, acrescento duas outras decisões que irão diminuir ainda mais essa participação, aprovadas em julho do ano passado, na Assembleia da República, ambas com os votos dos partidos do chamado “centrão”, o PS e o PSD.

A primeira, que aumentou o número de cidadãos necessário para uma petição ser discutida no plenário da AR, de 4000 para 7500 (a proposta inicial, vetada pelo Presidente da República, era ainda mais restritiva, ao exigir 10000 assinaturas). A segunda (que, na altura teve algum impacto – Expresso, 21 de agosto), que impõe uma série de exigências aos movimentos independentes candidatos às autarquias locais. O seu caráter limitador à participação cidadã provocou, entretanto, um debate tão intenso, que já se fala na eliminação de algumas dessas medidas no final deste mês.

Petição : 15071 assinaturas em papel, 3651 pela internet.

Só para termos uma ideia do que se trata, recuemos a 2013. Nas eleições desse ano um grupo de cidadãos resolveu concorrer sob a mesma sigla (Por Beja com Todos) a várias autarquias do concelho de Beja – à Câmara, à Assembleia Municipal e a cinco Assembleias de Freguesia/União de Freguesias. Se a lei aprovada o ano passado (Lei Orgânica 1-A/2020) fosse aplicada, em cada uma dessas autarquias teria de ser apresentada uma candidatura própria, sem qualquer ligação às restantes e sem a mesma sigla. Ou seja, esse grupo de cidadãos, que se juntou por princípios comuns, teria de ser “retalhado” em sete candidaturas diferentes (o que não acontece nas candidaturas partidárias).

                                                             Foto : Blogue Alvitrando

Se analisarmos o que se passa a nível regional e local, também não faltam exemplos de atitudes de desvalorização da participação dos cidadãos na vida das suas comunidades. Desde logo, o modo como são tratados os movimentos de cidadãos que lutam por certos direitos, como as acessibilidades (rodo e ferroviárias) em condições. “Alarido” e “gritaria” são apenas dois dos epítetos atribuídos por alguma partidocracia a essas lutas que, entre outras ações, já passaram por petições com milhares de assinaturas, discutidas na AR, por reuniões com deputados, governantes (em várias legislaturas) e com o Presidente da República, deslocação ao Parlamento Europeu, só para citar algumas. 

Ass República - 16/2/2011- Entrega da petição
 
Casa da Cultura - 5/5/2011
Foto : Filipe Campaniço


Ovibeja - 8/5/2011- à espera do Presidente
Foto : Lopes Guerreiro
29/6/2011 - gravação do hino do Beja Merece +
Foto : João Espinho

https://www.youtube.com/watch?v=60DIvh1kS4A


Por outro lado, embora se fale na falta de “massa crítica” na região, acontece com alguma frequência (este ano poderá voltar a suceder) que, em períodos pré-eleitorais autárquicos, se convidem alguns cidadãos ligados a determinadas áreas – urbanismo, cultura, educação, turismo, desporto – para debates abertos à sociedade, em que se discutem esses temas. Só que, passado o período eleitoral e instalados os eleitos locais, estes assumam uma postura oposta a essa abertura manifestada alguns meses antes, ignorando contribuições e ideias desses mesmos cidadãos, como se fossem autossuficientes ou lhes bastasse ouvir os seus correligionários políticos.

E que dizer do ostracismo a que foi votado um dos primeiros (e poucos) conselhos municipais da Cultura, precisamente o que foi aprovado em Beja em 2008? Um instrumento importante para a participação de agentes e associações culturais na discussão e formulação de políticas culturais concelhias e regionais, foi pura e simplesmente metido na gaveta pelos três executivos municipais que se seguiram. Neste momento, nem o seu regulamento consta no site da CM Beja. Não deixa de ser irónico que há dias, uma notícia sobre a candidatura de Oeiras a Capital Europeia da Cultura em 2027, indicasse que uma das estratégias seria a criação de um CMC (treze anos depois de ter sido criado o de Beja).

Regulamento n.º 56/2008, 30/1/2008 : https://dre.pt/application/conteudo/1123100 

Mais haveria para dizer sobre a questão da participação dos cidadãos na vida da sua polis, mas pelo que atrás se referiu, uma das premissas para que tal aconteça é o fim da desconfiança e até hostilização com que muitos desses cidadãos são encarados, a maior parte das vezes porque algumas das suas opiniões não coincidem, em determinados momentos e sobre determinados temas, com as dos políticos instalados. Quando isso acontecer, talvez a pontuação na Participação Política possa subir uns pontos, para que Portugal volte novamente a ser um país “totalmente democrático”.

(1)   António Saraiva, Presidente da CIP, no último Prós e Contras (RTP1), 28 de setembro de 2020. 

O que os cidadãos de Beja querem





26 de março