No dia 4 de outubro do ano
passado, a rubrica semanal de José Tolentino Mendonça na Revista do jornal
Expresso, intitulava-se “ A Cultura não é um luxo”. Para o autor, “… é uma necessidade básica…”
já que, “… o homem não vive só de pão: precisaremos sempre de alimentos de
outra natureza”. Avança, ainda, com outra afirmação : “Um dos perigos
contemporâneos é a transformação da cultura em indústria de entretenimento,
recheada de produtos de consumo rápido e sonâmbulo, capturada pelo simplismo
dos modelos”.
Poucos meses antes (26 de julho),
este mesmo tema tinha sido objeto de uma entrevista a Mario Vargas Llosa (MVL)
no jornal Público, retomando um tema abordado pelo escritor peruano no livro “A
Civilização do Espectáculo” (Quetzal Editores, 2012). Nessa entrevista, onde se
fala da sociedade atual e de política, aborda-se também a cultura, em geral e,
como não podia deixar de ser, a literatura, em particular.
Para MVL, “… a literatura hoje em
dia vive uma crise muito profunda, converteu-se sobretudo em entretenimento,
perdeu a sua pugnacidade, a sua beligerância crítica, e busca sobretudo
entreter. E o entretenimento também é uma espécie de adormecimento, uma maneira
de desmobilizar criticamente os cidadãos.” Transpondo esta ideia para um campo
mais lato, MVL, afirma que “… o desaparecimento desse espírito crítico vem com
a frivolização de uma cultura que só procura entreter e divertir, e que se
converteu muito mais num espetáculo do que o que tradicionalmente era :
pensamento, ideias, uma visão crítica da realidade, da vida e de todas as
manifestações das relações humanas.” MVL vai ainda mais longe, ao afirmar que o
“inimigo maior” da democracia é “… o desaparecimento da cultura enquanto
questionamento constante da realidade.”
Ainda que não se debruçando
especificamente sobre este tema, um artigo de António Pinto Ribeiro (APR)
publicado um mês antes (13 de junho), também no Público, com o título
“Alienação, uma palavra esquecida”, aborda “a lógica da quantificação do
mundo”, aplicada às manifestações culturais, que “…faz parte de ideologia que
vê nos cidadãos apenas consumidores… “ e cuja “… lógica é a do consumo do
entretenimento…”
Para APR, os “recordes de bilheteira”
que se procuram (e se apregoam), contagiam “… o quotidiano da experiência
estética, da fruição ou da criação artística com a terminologia própria das
superfícies comerciais…” podendo também, transformar-se em “números políticos”,
ao “… possuir um ‘capital’ político que faz com que se mantenha um gestor, um
programa, uma organização dependente da administração pública, por exemplo.”
Três interessantes reflexões, que
podemos transpor para a realidade do nosso país. Desde logo, um verdadeiro
“massacre” televisivo, com programas diários, em dose dupla ao fim de semana,
que se repetem e replicam, com os mesmos artistas e grupos, os mesmos concursos
que apelam às chamadas de valor acrescentado, os mesmos
apresentadores/animadores que, não poucas vezes procuram ter graça, para serem
“engraçadinhos”. É, de facto, uma “guerra”, com armas muito poderosas, que
transforma entretenimento em mau gosto e vice-versa e que contamina toda a
nossa sociedade, com o tal “adormecimento”, a que MVL se refere.
Domingo à tarde, algures por aí |
Depois, ao nível dos poderes
públicos, assistimos, a pretexto do “combate à crise”, à desvalorização da
Cultura, não só pela extinção do ministério da pasta, substituído por uma
secretaria de estado (recuando cerca de 20 anos), mas também pelo
desinvestimento em áreas essenciais, como o património, o livro e a leitura ou
a criação artística, sem falar nos baixos orçamentos das direções regionais,
que as levam a uma quase paralisia.
Tendo em conta a inexistência de
um verdadeiro poder regional (que poderia resolver, por exemplo, situações como
a que até há pouco passou o Museu Regional de Beja), resta-nos, como verdadeiro
motor da cultura local, os municípios (para além, claro, dos agentes e
associações culturais que, muitas vezes contra ventos e marés, vão
desempenhando, alguns há décadas, um papel insubstituível, junto das
comunidades).
Ao nível municipal, tal como no
nacional, as políticas culturais têm sobretudo a ver com os seus promotores e
executores, ou seja, os decisores políticos. Veja-se o caso paradigmático do
Porto onde, após o “apagão cultural” da cidade, no consulado de Rui Rio (cujo
ponto máximo foi a entrega do teatro Rivoli a Filipe la Féria e onde pontuavam
as corridas de carros, ou de aviões sobre o Douro) um novo executivo, com uma
aposta forte na Cultura, liderada por um dinâmico e competente vereador, voltou
a pôr o Porto no mapa cultural, afirmando a cidade, a nível regional e nacional
e até internacional.
O que se passa na nossa região
não é muito diferente do resto do país. Para além de uma atividade cultural
mais ou menos consistente, mais ou menos esporádica e pontual, cada vez mais se
impõem certames que pouco se distinguem uns dos outros (às vezes até coincidem
nas datas). Ou são as feiras temáticas em torno de um tema ou produto regional
– o queijo, o vinho, o porco, o pão, a água, o peixe – onde, além dos stands
institucionais e das associações locais, se divulgam (e vendem) produtos da
região e de outras zonas, se instalam as convenientes tasquinhas de comes e
bebes e se promovem espetáculos que obedecem, regra geral, a formatos idênticos
(e cuja cereja no topo do bolo é a transmissão televisiva num domingo à tarde);
ou são as reconstituições históricas (romanas, medievais, quinhentistas, etc),
adquiridas a empresas especializadas no ramo, em “pacotes” que variam com os
milhares de euros disponíveis, e onde os mesmos figurantes tocam e dançam as
mesmas músicas, fazem os mesmos números circenses, onde se vendem o mesmo
artesanato, os chás e os licores, apenas variando (ou não) o vestuário e os
adereços que se apresentam nos desfiles “históricos”.
Feira medieval, algures por aí (onde é que eu já vi isto?) |
Os milhares de assistentes a
estes eventos são os tais consumidores a que os autores referidos no início
deste texto se referem e que, num “voyeurismo” acrítico observam o “comércio de
escravos” ou a “luta de gladiadores”, esquecendo (ou não sendo informados) que
a grandeza de um império (neste caso, o romano), significou a expressão do pior
que a natureza humana pode fazer (e que foi repetido noutros impérios). Os
escravos que ali são representados podiam muito bem ser os que estavam ao
serviço do “patrício” proprietário da villa
Pisões e que os gladiadores eram os que serviam a filosofia do poder
dominante, dar pão e circo ao povo, para que o povo estivesse satisfeito. E, no
entanto, bastava o simples recitar de uma poema de Brecht para esses
assistentes se questionassem : “ A grande
Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? (…) César venceu os
gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? “
É claro que, ao lado destes
eventos, existem autarquias que procuram desenvolver iniciativas coerentes e
consistentes, visando a promoção cultural dos seus cidadãos. Aliás, cultura e
entretenimento não são incompatíveis e até podem coexistir, não se pode é
confundir o papel de cada um e, muito menos, os poderes públicos substituírem
coletividades locais na promoção de certos eventos enraizados nas tradições
locais.
As Troianas, pela Escola da Noite, Coimbra Casa da Cultura de Beja, 1998 - Programa Bejarte |
O Festival Islâmico de Mértola
tem um programa cultural rico e diversificado, que complementa toda a
componente mais lúdica e a vertente comercial, cuja expressão máxima é o souk. As Palavras Andarilhas ou o
Festival de Banda Desenhada, em Beja, a Quinzena Primavera no Campo Branco ou a
Planície Mediterrânica, em Castro Verde, o Encontro de Culturas, em Serpa, são
eventos consolidados no mapa cultural regional e até nacional, tal como
iniciativas de outro tipo, como o Fórum 21, em Moura, ou as Conferências de
Aljustrel, que procuram, com o recurso à palavra e à troca de ideias, debater
assuntos de interesse municipal e regional. Outras autarquias, pelo contrário,
não aproveitam certas oportunidades, como foi o caso de Beja que, ao ignorar os
50 anos da morte de Abel Viana, ocorridos em 2014, perdeu uma boa oportunidade
de promover o debate sobre o património
e a arqueologia, em particular, num momento de grande atividade, como o provam
as escavações do fórum romano, do
Outeiro do Circo ou as que as obras da EDIA têm originado (momento que poderia
igualmente servir para discutir a tão badalada e controversa demolição do
depósito da água).
Políticas culturais municipais,
mais do que apostar em grandes eventos que, de efémeros que são, pouco ou nada
deixam (para além de praças cheias), devem assentar na formação e fidelização
de públicos, em programas coerentes e devidamente financiados, que garantam a
qualidade do trabalho nas bibliotecas, nos museus, nos teatros, nas galerias de
arte; na preservação e na divulgação e fruição do património cultural e
natural, material e imaterial; nas parcerias com o movimento associativo e com
as escolas; no trabalho em rede com outras autarquias e entidades, regionais e
nacionais.
Só assim se concretizará o sonho
do “nosso” Bento de Jesus Caraça que, em 1933 escreveu : “A aquisição da
cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que
há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as
suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico,
intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da
liberdade.”
26 junho 2015 |