Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Cultura e entretenimento, um debate necessário.

No dia 4 de outubro do ano passado, a rubrica semanal de José Tolentino Mendonça na Revista do jornal Expresso, intitulava-se “ A Cultura não é um luxo”.  Para o autor, “… é uma necessidade básica…” já que, “… o homem não vive só de pão: precisaremos sempre de alimentos de outra natureza”. Avança, ainda, com outra afirmação : “Um dos perigos contemporâneos é a transformação da cultura em indústria de entretenimento, recheada de produtos de consumo rápido e sonâmbulo, capturada pelo simplismo dos modelos”.
Poucos meses antes (26 de julho), este mesmo tema tinha sido objeto de uma entrevista a Mario Vargas Llosa (MVL) no jornal Público, retomando um tema abordado pelo escritor peruano no livro “A Civilização do Espectáculo” (Quetzal Editores, 2012). Nessa entrevista, onde se fala da sociedade atual e de política, aborda-se também a cultura, em geral e, como não podia deixar de ser, a literatura, em particular.
Para MVL, “… a literatura hoje em dia vive uma crise muito profunda, converteu-se sobretudo em entretenimento, perdeu a sua pugnacidade, a sua beligerância crítica, e busca sobretudo entreter. E o entretenimento também é uma espécie de adormecimento, uma maneira de desmobilizar criticamente os cidadãos.” Transpondo esta ideia para um campo mais lato, MVL, afirma que “… o desaparecimento desse espírito crítico vem com a frivolização de uma cultura que só procura entreter e divertir, e que se converteu muito mais num espetáculo do que o que tradicionalmente era : pensamento, ideias, uma visão crítica da realidade, da vida e de todas as manifestações das relações humanas.” MVL vai ainda mais longe, ao afirmar que o “inimigo maior” da democracia é “… o desaparecimento da cultura enquanto questionamento constante da realidade.”
Ainda que não se debruçando especificamente sobre este tema, um artigo de António Pinto Ribeiro (APR) publicado um mês antes (13 de junho), também no Público, com o título “Alienação, uma palavra esquecida”, aborda “a lógica da quantificação do mundo”, aplicada às manifestações culturais, que “…faz parte de ideologia que vê nos cidadãos apenas consumidores… “ e cuja “… lógica é a do consumo do entretenimento…”
Para APR, os “recordes de bilheteira” que se procuram (e se apregoam), contagiam “… o quotidiano da experiência estética, da fruição ou da criação artística com a terminologia própria das superfícies comerciais…” podendo também, transformar-se em “números políticos”, ao “… possuir um ‘capital’ político que faz com que se mantenha um gestor, um programa, uma organização dependente da administração pública, por exemplo.”
Três interessantes reflexões, que podemos transpor para a realidade do nosso país. Desde logo, um verdadeiro “massacre” televisivo, com programas diários, em dose dupla ao fim de semana, que se repetem e replicam, com os mesmos artistas e grupos, os mesmos concursos que apelam às chamadas de valor acrescentado, os mesmos apresentadores/animadores que, não poucas vezes procuram ter graça, para serem “engraçadinhos”. É, de facto, uma “guerra”, com armas muito poderosas, que transforma entretenimento em mau gosto e vice-versa e que contamina toda a nossa sociedade, com o tal “adormecimento”, a que MVL se refere.
Domingo à tarde, algures por aí

Depois, ao nível dos poderes públicos, assistimos, a pretexto do “combate à crise”, à desvalorização da Cultura, não só pela extinção do ministério da pasta, substituído por uma secretaria de estado (recuando cerca de 20 anos), mas também pelo desinvestimento em áreas essenciais, como o património, o livro e a leitura ou a criação artística, sem falar nos baixos orçamentos das direções regionais, que as levam a uma quase paralisia.
Tendo em conta a inexistência de um verdadeiro poder regional (que poderia resolver, por exemplo, situações como a que até há pouco passou o Museu Regional de Beja), resta-nos, como verdadeiro motor da cultura local, os municípios (para além, claro, dos agentes e associações culturais que, muitas vezes contra ventos e marés, vão desempenhando, alguns há décadas, um papel insubstituível, junto das comunidades).
Ao nível municipal, tal como no nacional, as políticas culturais têm sobretudo a ver com os seus promotores e executores, ou seja, os decisores políticos. Veja-se o caso paradigmático do Porto onde, após o “apagão cultural” da cidade, no consulado de Rui Rio (cujo ponto máximo foi a entrega do teatro Rivoli a Filipe la Féria e onde pontuavam as corridas de carros, ou de aviões sobre o Douro) um novo executivo, com uma aposta forte na Cultura, liderada por um dinâmico e competente vereador, voltou a pôr o Porto no mapa cultural, afirmando a cidade, a nível regional e nacional e até internacional.
O que se passa na nossa região não é muito diferente do resto do país. Para além de uma atividade cultural mais ou menos consistente, mais ou menos esporádica e pontual, cada vez mais se impõem certames que pouco se distinguem uns dos outros (às vezes até coincidem nas datas). Ou são as feiras temáticas em torno de um tema ou produto regional – o queijo, o vinho, o porco, o pão, a água, o peixe – onde, além dos stands institucionais e das associações locais, se divulgam (e vendem) produtos da região e de outras zonas, se instalam as convenientes tasquinhas de comes e bebes e se promovem espetáculos que obedecem, regra geral, a formatos idênticos (e cuja cereja no topo do bolo é a transmissão televisiva num domingo à tarde); ou são as reconstituições históricas (romanas, medievais, quinhentistas, etc), adquiridas a empresas especializadas no ramo, em “pacotes” que variam com os milhares de euros disponíveis, e onde os mesmos figurantes tocam e dançam as mesmas músicas, fazem os mesmos números circenses, onde se vendem o mesmo artesanato, os chás e os licores, apenas variando (ou não) o vestuário e os adereços que se apresentam nos desfiles “históricos”.
Feira medieval, algures por aí (onde é que eu já vi isto?)
Os milhares de assistentes a estes eventos são os tais consumidores a que os autores referidos no início deste texto se referem e que, num “voyeurismo” acrítico observam o “comércio de escravos” ou a “luta de gladiadores”, esquecendo (ou não sendo informados) que a grandeza de um império (neste caso, o romano), significou a expressão do pior que a natureza humana pode fazer (e que foi repetido noutros impérios). Os escravos que ali são representados podiam muito bem ser os que estavam ao serviço do “patrício” proprietário da villa Pisões e que os gladiadores eram os que serviam a filosofia do poder dominante, dar pão e circo ao povo, para que o povo estivesse satisfeito. E, no entanto, bastava o simples recitar de uma poema de Brecht para esses assistentes se questionassem : “ A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? (…) César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? “
É claro que, ao lado destes eventos, existem autarquias que procuram desenvolver iniciativas coerentes e consistentes, visando a promoção cultural dos seus cidadãos. Aliás, cultura e entretenimento não são incompatíveis e até podem coexistir, não se pode é confundir o papel de cada um e, muito menos, os poderes públicos substituírem coletividades locais na promoção de certos eventos enraizados nas tradições locais.
As Troianas, pela Escola da Noite, Coimbra
Casa da Cultura de Beja, 1998 - Programa Bejarte
O Festival Islâmico de Mértola tem um programa cultural rico e diversificado, que complementa toda a componente mais lúdica e a vertente comercial, cuja expressão máxima é o souk. As Palavras Andarilhas ou o Festival de Banda Desenhada, em Beja, a Quinzena Primavera no Campo Branco ou a Planície Mediterrânica, em Castro Verde, o Encontro de Culturas, em Serpa, são eventos consolidados no mapa cultural regional e até nacional, tal como iniciativas de outro tipo, como o Fórum 21, em Moura, ou as Conferências de Aljustrel, que procuram, com o recurso à palavra e à troca de ideias, debater assuntos de interesse municipal e regional. Outras autarquias, pelo contrário, não aproveitam certas oportunidades, como foi o caso de Beja que, ao ignorar os 50 anos da morte de Abel Viana, ocorridos em 2014, perdeu uma boa oportunidade de promover o  debate sobre o património e a arqueologia, em particular, num momento de grande atividade, como o provam as escavações do fórum romano, do Outeiro do Circo ou as que as obras da EDIA têm originado (momento que poderia igualmente servir para discutir a tão badalada e controversa demolição do depósito da água).
Políticas culturais municipais, mais do que apostar em grandes eventos que, de efémeros que são, pouco ou nada deixam (para além de praças cheias), devem assentar na formação e fidelização de públicos, em programas coerentes e devidamente financiados, que garantam a qualidade do trabalho nas bibliotecas, nos museus, nos teatros, nas galerias de arte; na preservação e na divulgação e fruição do património cultural e natural, material e imaterial; nas parcerias com o movimento associativo e com as escolas; no trabalho em rede com outras autarquias e entidades, regionais e nacionais.

Só assim se concretizará o sonho do “nosso” Bento de Jesus Caraça que, em 1933 escreveu : “A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.”    
26 junho 2015


Sem comentários:

Enviar um comentário