Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Cultura

As Troianas

Eurípedes.
Em 1998 a Escola da Noite, companhia de Coimbra, apresentou na Casa da Cultura a peça As Troianas, um clássico do teatro grego do século V a.C. Nela, Eurípedes narra o destino trágico das mulheres de Tróia, após a derrota na guerra com os gregos. Uma peça muito dura, pesada, quer para o público que assistiu (e que encheu o auditório interior), quer para os atores que lhe deram corpo. De tal forma, que a própria companhia escrevia na folha de sala: “É tal a extensão do drama de Eurípides, uma das tragédias mais lancinantes do teatro grego, que o nosso trabalho durante os ensaios se tornou, por vezes, quase insuportável“.
Pois bem, mesmo com este “desabafo”, no final da peça, atores e restantes membros da companhia estavam radiantes com a forma como a mesma tinha corrido: um público silencioso, atento, concentrado, que no final brindou os intervenientes com uma prolongada salva de palmas. Qual a razão para esta satisfação da companhia? Estavam numa digressão patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura e, em vários locais, tinha havido um perturbador corrupio de entradas e saídas nas salas, prejudicando o trabalho dos atores e a atenção do público realmente interessado.
Em Beja isso não aconteceu, por dois motivos (para além do interesse de quem se deslocou para assistir) : porque se respeitou a indicação de fechar a porta logo que a peça teve início e porque o BEJARTE assentava na política da entrada paga (algo raro nessa altura, em iniciativas autárquicas) o que, de certa maneira, garantia que quem pagava o seu bilhete (na altura 500 escudos) era com a finalidade de assistir a algo que desejava.
Essa peça integrava-se num programa criado um ano antes pela Câmara Municipal, designado BEJARTE e que tinha dois objetivos essenciais, preparar os trabalhadores da autarquia para a futura reabertura do Pax Julia e criar e formar públicos nas várias áreas (música, teatro e dança), através da apresentação regular de espetáculos em locais tão diversos como a Casa da Cultura, o auditório do Instituto Politécnico, a Pousada de São Francisco ou o Museu Regional. Vários foram os artistas e companhias que se apresentaram entre 1997 e 2005: Cristina Branco, Companhia Paulo Ribeiro (dança) ou Companhia de Teatro de Braga, só para citar alguns. O último espetáculo deste programa teve como protagonista Aldina Duarte, na Casa da Cultura, no dia 17 de Março de 2005, três meses antes do Pax Julia reabrir.
Músicas de Sol e Lua
Sol e Lua.
No dia 17 de junho de 2005, no meio de algumas peripécias de última hora (que, quem sabe, prenunciavam o excelente trabalho viria a ter lugar nos anos futuros), o PAX JULIA Teatro Municipal iniciou a terceira fase da sua já longa vida. Sérgio Godinho, Vitorino, Rão Kyao, Janita Salomé e Filipa Pais, acompanhados por alguns músicos, interpretavam, a solo, duo, trio ou em quinteto, alguns dos mais importantes temas da música popular portuguesa. Sendo todos eles virtuosos artistas, difícil foi destacar algumas das várias interpretações, mas uma das que mais cativou o público que enchia a sala foi o “Brilhozinho nos Olhos”, cantado a solo por Sérgio Godinho. O mesmo que, em contrapartida, na última canção, interpretada pelos cinco, que homenageava José Afonso, teve alguns lapsos, enganando-se na letra da mesma.
No final do espetáculo, num hábito que mantive ao longo dos anos em que dirigi o Pax Julia, fui ter com os artistas aos bastidores e encontrei um ambiente que misturava um certo constrangimento do grupo com uma irritação bem audível, do Vitorino para com o Sérgio, pelo que acontecera momentos antes. Embora tentasse pôr um pouco de água na fervura, não me foi difícil perceber a razão dos lapsos ocorridos, que estava bem à vista.
Volver
Almodovar.
Uma das vertentes da programação do Pax Julia nesta “terceira vida” foi (e continua a ser) o cinema, não na sua vertente comercial (ainda que esta seja muito limitada em Beja), mas procurando apresentar filmes de qualidade, muitos deles fora dos circuitos habituais, logo dificilmente aqui apresentados. Assim, foram programados, por exemplo, ciclos temáticos ou de autor (à terça-feira), complementados com filmes mais comerciais à sexta (quando possível).
Dezembro de 2006 foi dedicado a Pedro Almodovar, com a apresentação dos seus três últimos filmes, Fala com Ela (2002), Má Educação (2004) e Volver (2006). Foi quando estava a preparar este ciclo que tive uma ideia (que, à partida, estaria condenada ao fracasso): convidar o realizador para se deslocar a Beja aquando desta iniciativa. Uma carta algo romantizada, sobre Beja e o Pax Julia, lá seguiu para El Deseo, a produtora dos filmes de Almodovar, sem qualquer expetativa de a mesma ter sequer resposta.
Eis senão quando, passados alguns dias, é recebida uma simpática missiva, assinada por Agustin, irmão de Pedro e produtor dos seus filmes, na qual agradecia o convite, que deixou o realizador sensibilizado, mas que não poderia aceitar, dado que nessa altura estaria no estrangeiro devido a compromissos anteriormente assumidos.
Uma coisa em forma de assim
Bernardo e os coreógrafos
Bernardo.
De entre os muitos artistas que conheci no Pax Julia, um dos que mais me marcou foi Bernardo Sasseti. Aqui atuou três vezes : em maio de 2008, a solo, no âmbito do InJazz, um festival descentralizado por várias localidades; em fevereiro de 2011 com o trio que tinha o seu nome, onde era acompanhado por outros dois excelentes músicos, o Carlos Barreto e o Alexandre Frazão; finalmente, em junho de 2011, interpretando as músicas que compusera para o espetáculo “Uma coisa em forma de assim”, da Companhia Nacional de Bailado (por sinal, o último que programei para o Pax Julia).
No final do espetáculo, embora já não trabalhasse aqui, fui ter com ele e estivemos a conversar no palco durante algum tempo. Foi aí que o Bernardo disse algo que me deixou atónito e satisfeito (e aos técnicos do teatro que assistiam à conversa): que gostava muito de atuar no Pax Julia, onde era sempre bem acolhido, pelos profissionais e pelo público, tendo este uma postura de atenção, respeito e afeto que lhe agradava, e que, graças a isso e às excelentes condições acústicas do espaço, talvez um dia viesse aqui gravar um disco a solo.
Não sei se, com tantos projetos em que estava sempre envolvido, o Bernardo se iria lembrar dessas palavras e se o tal disco não passaria apenas de mais um momento de entusiasmo tão próprio dele. Mas, quase um ano depois desta nossa conversa, chegaria pela tv a notícia, cruel e estúpida da sua morte. O Bernardo não gravaria mais, nem esse nem outros discos, não viria uma quarta vez ao Pax, não encantaria os bejenses com os acordes que saíam, qual passe de magia, das suas mãos únicas.
     
Todas as Vidas num Palco - Uma placa para a História
Estas foram apenas quatro das histórias que marcaram quase quinze anos de trabalho na área da Cultura na CM Beja e, em particular, dos cinco anos e meio no Pax Julia. Em tempos conturbados como os que estamos a viver, achei que o seu relato seria a melhor homenagem que poderia fazer aos excelentes e dedicados profissionais com quem trabalhei e aos muitos artistas (locais e nacionais) que resistiram ao longo dos anos e que estão hoje em dia numa fase delicada, do ponto de vista profissional e pessoal.


3 abril 2020