As Troianas |
Eurípedes.
Em 1998 a Escola da Noite, companhia de Coimbra, apresentou
na Casa da Cultura a peça As Troianas, um clássico do teatro grego do século V
a.C. Nela, Eurípedes narra o destino trágico das mulheres de Tróia, após a
derrota na guerra com os gregos. Uma peça muito dura, pesada, quer para o
público que assistiu (e que encheu o auditório interior), quer para os atores
que lhe deram corpo. De tal forma, que a própria companhia escrevia na folha de
sala: “É
tal a extensão do drama de Eurípides, uma das tragédias mais lancinantes do
teatro grego, que o nosso trabalho durante os ensaios se tornou, por vezes,
quase insuportável“.
Pois bem, mesmo com este “desabafo”, no final da peça, atores e
restantes membros da companhia estavam radiantes com a forma como a mesma tinha
corrido: um público silencioso, atento, concentrado, que no final brindou os
intervenientes com uma prolongada salva de palmas. Qual a razão para esta
satisfação da companhia? Estavam numa digressão patrocinada pela Secretaria de
Estado da Cultura e, em vários locais, tinha havido um perturbador corrupio de
entradas e saídas nas salas, prejudicando o trabalho dos atores e a atenção do
público realmente interessado.
Em Beja isso não aconteceu, por dois motivos (para além do
interesse de quem se deslocou para assistir) : porque se respeitou a indicação
de fechar a porta logo que a peça teve início e porque o BEJARTE assentava na
política da entrada paga (algo raro nessa altura, em iniciativas autárquicas) o
que, de certa maneira, garantia que quem pagava o seu bilhete (na altura 500
escudos) era com a finalidade de assistir a algo que desejava.
Essa peça integrava-se num programa criado um ano antes pela
Câmara Municipal, designado BEJARTE e que tinha dois objetivos essenciais,
preparar os trabalhadores da autarquia para a futura reabertura do Pax Julia e
criar e formar públicos nas várias áreas (música, teatro e dança), através da
apresentação regular de espetáculos em locais tão diversos como a Casa da
Cultura, o auditório do Instituto Politécnico, a Pousada de São Francisco ou o
Museu Regional. Vários foram os artistas e companhias que se apresentaram entre
1997 e 2005: Cristina Branco, Companhia Paulo Ribeiro (dança) ou Companhia de
Teatro de Braga, só para citar alguns. O último espetáculo deste programa teve
como protagonista Aldina Duarte, na Casa da Cultura, no dia 17 de Março de
2005, três meses antes do Pax Julia reabrir.
Músicas de Sol e Lua |
Sol e Lua.
No dia 17 de junho de 2005, no meio de algumas peripécias de
última hora (que, quem sabe, prenunciavam o excelente trabalho viria a ter
lugar nos anos futuros), o PAX JULIA Teatro Municipal iniciou a terceira fase
da sua já longa vida. Sérgio Godinho, Vitorino, Rão Kyao, Janita Salomé e
Filipa Pais, acompanhados por alguns músicos, interpretavam, a solo, duo, trio
ou em quinteto, alguns dos mais importantes temas da música popular portuguesa.
Sendo todos eles virtuosos artistas, difícil foi destacar algumas das várias
interpretações, mas uma das que mais cativou o público que enchia a sala foi o
“Brilhozinho nos Olhos”, cantado a solo por Sérgio Godinho. O mesmo que, em
contrapartida, na última canção, interpretada pelos cinco, que homenageava José
Afonso, teve alguns lapsos, enganando-se na letra da mesma.
No final do espetáculo, num hábito que mantive ao longo dos anos
em que dirigi o Pax Julia, fui ter com os artistas aos bastidores e encontrei
um ambiente que misturava um certo constrangimento do grupo com uma irritação
bem audível, do Vitorino para com o Sérgio, pelo que acontecera momentos antes.
Embora tentasse pôr um pouco de água na fervura, não me foi difícil perceber a
razão dos lapsos ocorridos, que estava bem à vista.
Volver |
Uma das vertentes da programação do Pax Julia nesta “terceira
vida” foi (e continua a ser) o cinema, não na sua vertente comercial (ainda que
esta seja muito limitada em Beja), mas procurando apresentar filmes de
qualidade, muitos deles fora dos circuitos habituais, logo dificilmente aqui
apresentados. Assim, foram programados, por exemplo, ciclos temáticos ou de
autor (à terça-feira), complementados com filmes mais comerciais à sexta
(quando possível).
Dezembro de 2006 foi dedicado a Pedro Almodovar, com a
apresentação dos seus três últimos filmes, Fala com Ela (2002), Má Educação
(2004) e Volver (2006). Foi quando estava a preparar este ciclo que tive uma
ideia (que, à partida, estaria condenada ao fracasso): convidar o realizador para
se deslocar a Beja aquando desta iniciativa. Uma carta algo romantizada, sobre
Beja e o Pax Julia, lá seguiu para El Deseo, a produtora dos filmes de
Almodovar, sem qualquer expetativa de a mesma ter sequer resposta.
Uma coisa em forma de assim |
Bernardo e os coreógrafos |
De entre os muitos artistas que conheci no Pax Julia, um dos que
mais me marcou foi Bernardo Sasseti. Aqui atuou três vezes : em maio de 2008, a
solo, no âmbito do InJazz, um festival descentralizado por várias localidades;
em fevereiro de 2011 com o trio que tinha o seu nome, onde era acompanhado por
outros dois excelentes músicos, o Carlos Barreto e o Alexandre Frazão;
finalmente, em junho de 2011, interpretando as músicas que compusera para o
espetáculo “Uma coisa em forma de assim”, da Companhia Nacional de Bailado (por
sinal, o último que programei para o Pax Julia).
No final do espetáculo, embora já não trabalhasse aqui, fui ter
com ele e estivemos a conversar no palco durante algum tempo. Foi aí que o
Bernardo disse algo que me deixou atónito e satisfeito (e aos técnicos do teatro que assistiam
à conversa): que gostava muito de atuar no Pax Julia, onde era sempre bem
acolhido, pelos profissionais e pelo público, tendo este uma postura de
atenção, respeito e afeto que lhe agradava, e que, graças a isso e às
excelentes condições acústicas do espaço, talvez um dia viesse aqui gravar um
disco a solo.
Não sei se, com tantos projetos em que estava sempre envolvido, o Bernardo
se iria lembrar dessas palavras e se o tal disco não passaria apenas de mais um
momento de entusiasmo tão próprio dele. Mas, quase um ano depois desta nossa
conversa, chegaria pela tv a notícia, cruel e estúpida da sua morte. O Bernardo não gravaria mais, nem esse nem outros discos, não
viria uma quarta vez ao Pax, não encantaria os bejenses com os acordes que
saíam, qual passe de magia, das suas mãos únicas.
Todas as Vidas num Palco - Uma placa para a História |
3 abril 2020 |
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