Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sábado, 5 de janeiro de 2019

Participação cidadã e redes sociais: uma contradição insanável?


No início deste ano foi divulgado um estudo da revista The Economist, sobre o índice de democracia no mundo, relativo a 2017, que colocava Portugal no 26º lugar, entre os 167 países analisados. Fora do grupo de dezanove países considerados “totalmente democráticos” (liderado por três países nórdicos), encontramo-nos no segundo, o dos países onde existirá uma “democracia com falhas”. Para esta posição contribuem dois dos cinco itens que integram esse estudo: participação política e cultura política, com 6,11 e 6,88 (em 10,00), respetivamente.
Acontece que, em minha opinião, a pontuação obtida no primeiro dos itens não está de acordo com o que tem acontecido nas duas últimas eleições autárquicas (2013 e 2017) no concelho de Beja (que é aquele que conheço melhor), em que se tem registado uma significativa participação nas listas, em particular para as das assembleias de freguesia, onde concorreram inúmeros cidadãos jovens e muitos outros nascidos já depois do 25 de abril. Ou seja, numa época em que muitos destes candidatos criticam e desconfiam (e, em alguns casos, com razão) da chamada “classe política” (sobretudo deputados e governantes), esses mesmos cidadãos não se excluem de participar na luta por melhores condições para as freguesias onde residem ou onde nasceram, num ato de cidadania de louvar.
Uma maior participação cidadã, em Beja ou em outra qualquer parte do país é sempre de enaltecer, o que poderia ser reforçado com a “democratização da opinião” proporcionada pela internet, nomeadamente pela blogosfera e depois pelo facebook, pelo facto de o acesso a estes novos meios de comunicação ter trazido novas possibilidades para a difusão e para o debate de ideias, em liberdade e quase sem limites.
Só que, infelizmente, não é isso que se passa, gerando-se uma improvável e insanável contradição entre o que parecia ser um importante contributo para a participação cidadã e os resultados obtidos nas redes sociais. Isso mesmo foi abordado, de forma bem clara e assertiva, num artigo de opinião do Doutor Hugo Lança, no passado dia 20 de novembro, neste mesmo jornal, sintomaticamente intitulado “Liberdade de expressão – RIP”.
Ao ler este artigo, lembrei-me de duas coisas. A primeira, uma publicação que fiz na minha página do Facebook há mais de dois anos, criticando Putin e Assad aquando da destruição de Allepo, na Síria. Pois bem, alguém com quem tinha cordiais relações pessoais e profissionais, baseadas no respeito mútuo, reagiu de uma forma de tal modo agressiva que, se me tivesse acusado de agente da CIA essa seria a menor das diatribes com que me brindou. Como escreveu Hugo Lança, “… qualquer pensamento diferente do meu é cobardemente atacado pelas hordas, com uma trivialidade e uma superficialidade inebriante, sem um milésimo de esforço para compreender a raiz dos argumentos”.
A leitura do artigo de HL remeteu-me para um outro, que lera há alguns anos, na publicação digital cartamaior.com.br , intitulado “A semente do ódio” (Luiz Claudio Tonchis, 4 de agosto de 2015). Ainda que reportado à realidade brasileira (e premonitório do que viria a acontecer na última eleição presidencial nesse país), descobre-se aí algo que viria a ser abordado mais tarde por outros: o fascismo das redes sociais, “não necessariamente político”, mas que “emerge do comportamento social”. Um comportamento marcado pelo “… racismo, xenofobia, dificuldade em aceitar as diferenças, desejo de exclusão ou descarte daquilo que não lhe agrada, intolerância e o fundamentalismo religioso, preconceito, etc”.
Não admira, pois, que, em Portugal (como no Brasil) existam tantos comportamentos intolerantes nas redes sociais, em especial quando se trata de política (nacional ou local), dando razão ao estudo da Economist atrás citado, em que, no item “Cultura Política”, atribui ao nosso país o nível 6,88, longe do 10 (o máximo) dos três países lideres (mas também da Irlanda). Voltando ao artigo da Carta Maior, LCT vai mais longe ao escrever que “O analfabeto político é aquele que não entende de história política, que não sabe interpretar os acontecimentos históricos e contextualizá-los”.
Por isso, nesta época de intolerância, nada melhor que recuar 255 anos e, como fez Hugo Lança no seu artigo, terminar com Voltaire (e, desta vez, com palavras do próprio) : “Seria o cúmulo da loucura pretender pôr todos os homens a pensar de maneira uniforme (…). Mais facilmente se conseguiria subjugar o universo inteiro pela força das armas do que subjugar todos os espíritos de uma só cidade” Tratado Sobre a Tolerância, 1763.
Ilustração de Paulo Monteiro


4 janeiro 2019