Cláudio Torres, em entrevista a Alexandra Lucas
Coelho, na revista 2, do Público de hoje : "O João Honrado não podia andar
de transportes públicos porque era apanhado, então vinha a pé de Coimbra até
Aveiro para a gente falar. Eu vivia num quartito alugado e ele ficava lá. Vinha
com os pés em sangue. A gente chamava-lhe o Patolas porque era um homem alto,
com pés enormes. Chegava com as meias desfeitas e as minhas meias ficavam-lhe a meio do pé. Não é
imaginável hoje o que era isto (...) Dormia no chão, numas almofadas(...) O
João Honrado era um homem fantástico". Isto passava-se em 1958/1959, o
Cláudio tinha aderido ao PCP com 19 anos, quando começou a trabalhar na fábrica
de azulejos Aleluia e o João era funcionário do partido e vivia na
clandestinidade. Um pequeno excerto de uma interessante entrevista, que nos
mostra a fibra de que era feito o João (que nos deixou há pouco) e o próprio
Cláudio, que passou por momentos dignos de livros de aventuras.
No
dia seguinte à sua morte, escrevi este texto, para uma eventual publicação, que
não chegou a acontecer. Já que estamos a falar desse grande homem, que admirei
desde a minha juventude, aqui fica esse texto :
O João
Estava quente, esse fim de tarde de um dia de Junho de 1976.
Era um verão quente, mas não tanto como o do ano anterior. Novembro arrefecera
sonhos e esfriara as paixões que inundavam as ruas e as praças do nosso país
desde “aquela madrugada” que a Sophia e todos nós esperávamos, desde aquele “dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio”
Aproximavam-se as terceiras eleições da nossa jovem democracia.
Depois das constituintes, em 1975 e das legislativas, em 1976 (simbolicamente
no dia 25 de Abril), seriam as presidenciais, onde eram quatro os candidatos.
Nessa tarde, em que a política (ainda) era tema de conversa
entre as pessoas, no grupo que se encontrava reunido o grande dilema era em
quem votar para derrotar aquele general que, naquele dia de novembro, com os
seus óculos escuros, prenunciara o princípio do fim da revolução em que tão
ardentemente acreditáramos: no candidato do Partido que, marcando o seu território,
procurava manter o fiel eleitorado, ou naquele que simbolizava a esperança do
regresso desses sonhos interrompidos? Para muitos (e não só para os mais
jovens, como nós), era uma opção difícil, uma luta entre a razão (e a lealdade
partidária) e o coração.
Estávamos nós nesta difícil encruzilhada, quando ele cruzou
a porta do Centro de Trabalho. A sua figura imponente, a sua voz firme e
decidida, fez-nos voltar a uma realidade que parecia estar tanto mais afastada,
quanto maiores eram as dúvidas que as conversas nos traziam.
“O que é que aqueles cartazes, fazem ali no chão, em fez de
estarem colados nas paredes?”, foi a pergunta que nos fez, para logo de seguida
acrescentar “Toca a pegar nos baldes, nos pincéis e na cola e todos para rua”.
E lá fomos, os que estávamos juntos nessa tarde e ele, trinta
ou mais anos mais velho do que a maioria de nós, rendidos à força das suas
convicções e ao exemplo da sua vida de resistente e de lutador pela liberdade e
por uma sociedade mais justa, afinal, a grande e elevada causa nos unia.
No outro dia de manhã, Santa Vitória acordou repleta de
cartazes de Octávio Pato, o dobro ou o triplo dos que os apoiantes de Otelo (o
Capitão de Abril que para muitos ainda era o Fidel que a nossa revolução precisava)
tinham afixado.
Ele era o João, que tínhamos conhecido após o 25 de Abril e
que, não obstante as diferenças de idade e do respeito e admiração que a sua biografia
impunham (nomeadamente os anos passados na prisão e na clandestinidade), nos
contagiava com o entusiasmo juvenil com que abraçava os ideais e as causas por
que lutava. Entre muitas a que se dedicou, destacam-se a que evitou o fim do
Diário do Alentejo ou, mais recentemente, a construção do monumento à Mulher
Alentejana, concebido por Rogério Ribeiro e que se encontra no Parque da
Cidade, em Beja.
Não foi por acaso que, no momento da sua morte, o jornal
Público o designou como “… o mais carismático dos comunistas alentejanos”, tal
como uns anos antes, Miguel Urbano Rodrigues, no prefácio ao seu livro “Textos
Alentejanos” escrevera: “Duas palavras sobem-me logo na memória quando penso em
João Honrado: revolucionário e alentejano. Não se pode compreender o homem, a
sua vida e o seu combate sem tomar consciência de que nesse filho de Ferreira o
alentejano e o revolucionário se fundem tempestuosamente, mas com harmonia”.
Em jeito de homenagem, deixamos aqui um excerto das palavras,
escritas em março de 1963, aquando do seu julgamento político (reproduzidas em
1988 num artigo de Paulo Barriga, na revista Imenso Sul , que o blogue A Cinco
Tons recordou poucos dias após a sua morte): “A cultura é
contra os interesses do regime na medida em que esclarece as vastas camadas do
nosso povo(…) O ódio do governo à cultura é o ódio do mentor do nazi-fascismo,
Goebbels, quando afirmava: “Quando ouço falar em cultura, rapo da pistola”
Em memória do João, um Homem de Cultura.
Um abraço solidário e amigo à Alice, sua companheira.
(Foto : Alentejo Popular) |
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