Santa
Vitória, Novembro de 1975. Tinha sido um ano e meio frenético, depois de
quarenta e oito de quietude opressora. Nesse curto período de tempo de um país
tão antigo, a história fez-se a uma velocidade estonteante, que contrastou com
a letargia em que o salazarismo propositadamente mergulhara os portugueses.
Dezanove
meses durou o PREC, período vivido por muitos com paixão e esperança e referido
por outros de uma forma acintosa. Esperança que chegou ao outro lado do oceano
e que levou o Chico a cantar “Eu queria estar na festa, pá”. Mas, lá como cá,
ditadura era ditadura e a canção foi censurada.
A
revolução que dos cravos foi chamada, teve também, ao longo desses meses, cenas
de violência, que fizeram mártires, como o padre Max, cujo lema de vida era
“servir o povo e nunca se servir dele”. E foi palco, principalmente, de outros
episódios, como o “28 de Setembro” ou o “11 de Março”, que ficaram na memória
como tentativas de interromper a revolução em curso.
E,
se o primeiro não passou de uma golpe palaciano, em nome de uma tal “maioria
silenciosa”, que terminou com a substituição de Spínola por Costa Gomes, como
presidente da república, o segundo já foi mais violento, dado que incluiu o
bombardeamento aéreo de um quartel (o RALIS) e a morte de um soldado e
ferimentos em outros. Foi a derradeira tentativa dos chamados “spinolistas”,
que resultou numa viragem à esquerda, com a formação do Conselho da Revolução e
a nacionalização de bancos e seguros.
Entre
Março e Novembro acentuam-se, entretanto, as divergências entre os próprios
“vencedores” deste último golpe, divisões profundas que se abrem, que criam
feridas jamais cicatrizadas, entre partidos políticos e, sobretudo, entre
militares que estavam do mesmo lado no 25 de Abril e que agora estão dos dois
lados da barricada.
Vivem-se
momentos históricos, como, por exemplo, a manifestação do dia 16 de Novembro,
que encheu o Terreiro do Paço, onde, soldados e povo, lado a lado, gritam a sua
fidelidade à revolução socialista, que seria irreversível em Portugal. Essa
mesma revolução que trazia ao nosso país revolucionários de toda a Europa, para
verem com os seus próprios olhos, como era possível, neste cantinho à beira mar
plantado, semear e colher todos os seus sonhos mais lindos, de uma sociedade
mais justa e igualitária.
Em
Setembro e em Março, como em todo o país, também nas nossas aldeias foram
feitas barricadas, para evitar a passagem dos contra revolucionários, parando e
revistando carros, num misto de vigilância, mas também de festa, onde se
confraternizava à volta de uma bebida e de um petisco. Onde se misturava a
alegria e o sentimento de dever cumprido, a lutar por uma causa justa.
Nesse
dia de Novembro, as coisas não correram da mesma maneira. Porque uma imagem da
televisão teve um simbolismo e transmitiu uma mensagem que iria marcar todos os
que se juntaram na Casa do Povo de Santa Vitória para, mais uma vez, defender a
sua revolução. No écran, onde um dos “nossos”, Duran Clemente, capitão de Abril,
estava a falar, surge, em seu lugar, uma comédia do Danny Kaye. Nesse momento, de angústia e de
revolta, ninguém sabia que a emissão passara de Lisboa para o Porto.
Nessa
noite e madrugada, a dúvida instalou-se: que se passara, quem iniciara as
hostilidades, a esquerda ou a direita? Como estava a evoluir a situação, quem
iria sair vencedor? Perguntas que nunca obtiveram resposta, ficando em todos um
sentimento de orfandade e de abandono à sua sorte. Todos os que ali estavam,
para defender a sua revolução, recolhiam a suas casas sem saber o dia seguinte,
longe da euforia de Setembro e de Março. O próprio Chico cantava agora “Foi
bonita a festa, pá”.
Afinal,
como muitos chegaram a vaticinar, essa noite não foi o “fim da História”, que
um tal Fukuyama anos mais tarde
(erradamente) anunciou. É claro que, a partir dessa data, com a “normalização”
democrática, abrandou significativamente a velocidade que marcou esses dezanove
meses, mas foi possível levar à prática muito por que se lutava então :
democratizar o acesso à Educação e à Saúde, melhorar as condições de vida e de
trabalho, promover a Cultura dos cidadãos, etc.
Nesse
dia de Novembro, perderam-se, certamente, muitas ilusões, mas ficaram os
ideais, que perduram para além dos contratempos da História. Porque, como diz o
“alentejano” José Mattoso, “…os ideais propõem-nos um horizonte que nunca
conseguiremos alcançar: o ideal da pureza, da beleza, da abnegação – nunca lá
chegaremos suficientemente…” (Público, 29
de Abril)
(Esta última “História de Abril” é dedicada à memória de
Miguel Portas)
4 de Maio |
Duran Clemente : a última imagem |
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