Na minha
infância e juventude, dois dos meus locais preferidos (entre outros), na aldeia
onde nasci e onde vivia, eram a Biblioteca Itinerante nº 18, da Gulbenkian, que
ali se deslocava uma vez por mês e a Casa do Povo, que ficava mesmo em frente à
escola primária que frequentei durante três anos (o primeiro foi na escola da
estação).
À biblioteca
ia buscar os livros que o senhor Alberto (Veríssimo) me incentivava a levar (e
eram alguns, todos os meses). À Casa do Povo ia ler as publicações que aí
chegavam e, de entre todas, duas preferia: a revista semanal Flama e o Diário
do Alentejo. Este último tem acompanhado toda a minha vida. Logo que pude,
tornei-me seu assinante, o que acontece até hoje.
O Diário do
Alentejo sempre se distinguiu da restante imprensa da chamada “província”.
Antes do 25 de Abril fazia parte de um reduzido leque de jornais (como o
Notícias da Amadora, o Jornal do Fundão ou o Comércio do Funchal), que ousava
enfrentar a censura e a ditadura. Além disso, os seus conteúdos escapavam ao
banal registo de casamentos, formaturas e outros eventos locais e, tal como
ainda hoje, distinguia-se também por ser um projeto profissional, feito por
profissionais.
Foi, por
isso, muito por “culpa” do DA que ganhei o gosto (que ainda mantenho) pela
leitura (e pela escrita).
Espicaçado
por uma professora de Português, colaborei, durante dois anos no suplemento
juvenil do jornal Época (que também chegava a Santa Vitória). Experiência que
terminou no dia em que soube que esse jornal pertencia ao partido único, a
Acção Nacional Popular, sucessor da União Nacional, de Salazar.
Estávamos em
1973, tinha quinze anos e começara a frequentar o 6º ano do Liceu de Beja. Um
dia, em Outubro ou Novembro, entrei timidamente na redação do Diário do
Alentejo, instalada na Praça da República, no mesmo prédio da livraria e da
gráfica que o imprimia.
Lá estavam o
José Moedas e o Manuel Sousa Tavares, de quem admirava os seus escritos. E o
diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos jornais,
da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no Diário do
Alentejo algo da minha autoria.
Melo Garrido
disse-me, então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a
sua publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um
conto com o título “A Moda”.
Como forma
de homenagear os 80 anos do Diário do Alentejo e todos os profissionais que por
ele têm passado, é esse conto que agora volto a publicar. Quase quarenta
depois, à exceção da guerra colonial, que nele estava presente, mantém uma
atualidade que a todos nos deve inquietar e interrogar.
A Moda
Depois de um copo e de uma palmada
nas costas, começou a moda. Era o melhor alto da aldeia. Do Alentejo. Até já
cantara na rádio. Com o grupo da Casa do Povo.
Nesse dia, houve feriado na aldeia.
Todos quiseram ouvir cantar os da moda. Entre estes, Tóino, o melhor alto de
Portugal.
O Tóino era um tipo com sorte…
Sorte malvada, dizia ele. Até já lhe
morrera um moço na tropa e agora já lá estava outro.
Há anos, ouvindo falar nos que
estavam além fronteira, viu-se na mesma situação que eles: um bom carro, um bom
par de notas no banco e uma boa vida. Isto, diziam eles, os emigrantes, quando
escreviam às mulheres. Os filhos brincavam na lama… Mas que importa isso?
“Tou-me lixando para isto” – disse o
Tóino, um dia. Um homem é um homem. Iria para a França. Veriam, então, quem era
ele.
Pediu emprestados os oitos contos
para o gajo que os passaria. A ele e a mais três da aldeia. Partiram numa noite
chuvosa.
“Não chores, mulher” – disse ele à
partida – “Verás quem é rico daqui a uns meses”. Beijou os filhos e montou-se
no automóvel.
Andou com água pelo pescoço. Viu as
pontas das carabinas dos guardas. Mas chegou. São (?) e salvo (?)
De repente viu-se sozinho em Paris. O
passador, logo que chegou à capital francesa, deixou-os à mercê da sorte.
Chorou. Como nunca antes o fizera.
Nem no enterro do filho que morrera na tropa. Andou aos pontapés. Passou fome.
Roubou.
Voltou meses depois. Sem “massa”.
Dizendo “merci”, debaixo do qual escondia a miséria. Passou a embriagar-se
todas as noites. Depois dava pancada na mulher, som o choro dos filhos.
Não queria trabalhar. Os ricos que o
fizessem. Nele, já ninguém punha as mãos em cima.
Esteve na cadeia por roubo. Saiu um
mês depois. Roto. Sujo.
Agora, canta a moda na taberna.
Reles. Miserável.
Mas isso que interessa?
Não é ele o melhor alto do mundo?
1 Junho |
Casa do Povo - onde conheci e comecei a gostar do Diário do Alentejo ( um jornal que é Património Cultural da Região ) |
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