Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Nos 80 anos do Diário do Alentejo:Um conto juvenil ( "A Moda" - 23 Dezembro 1973)


Na minha infância e juventude, dois dos meus locais preferidos (entre outros), na aldeia onde nasci e onde vivia, eram a Biblioteca Itinerante nº 18, da Gulbenkian, que ali se deslocava uma vez por mês e a Casa do Povo, que ficava mesmo em frente à escola primária que frequentei durante três anos (o primeiro foi na escola da estação).

À biblioteca ia buscar os livros que o senhor Alberto (Veríssimo) me incentivava a levar (e eram alguns, todos os meses). À Casa do Povo ia ler as publicações que aí chegavam e, de entre todas, duas preferia: a revista semanal Flama e o Diário do Alentejo. Este último tem acompanhado toda a minha vida. Logo que pude, tornei-me seu assinante, o que acontece até hoje.
O Diário do Alentejo sempre se distinguiu da restante imprensa da chamada “província”. Antes do 25 de Abril fazia parte de um reduzido leque de jornais (como o Notícias da Amadora, o Jornal do Fundão ou o Comércio do Funchal), que ousava enfrentar a censura e a ditadura. Além disso, os seus conteúdos escapavam ao banal registo de casamentos, formaturas e outros eventos locais e, tal como ainda hoje, distinguia-se também por ser um projeto profissional, feito por profissionais.
Foi, por isso, muito por “culpa” do DA que ganhei o gosto (que ainda mantenho) pela leitura (e pela escrita).
Espicaçado por uma professora de Português, colaborei, durante dois anos no suplemento juvenil do jornal Época (que também chegava a Santa Vitória). Experiência que terminou no dia em que soube que esse jornal pertencia ao partido único, a Acção Nacional Popular, sucessor da União Nacional, de Salazar.
Estávamos em 1973, tinha quinze anos e começara a frequentar o 6º ano do Liceu de Beja. Um dia, em Outubro ou Novembro, entrei timidamente na redação do Diário do Alentejo, instalada na Praça da República, no mesmo prédio da livraria e da gráfica que o imprimia.
Lá estavam o José Moedas e o Manuel Sousa Tavares, de quem admirava os seus escritos. E o diretor, Melo Garrido, a quem me dirigi, falando-lhe do meu gosto pelos jornais, da intenção de ser jornalista e de como gostaria de ver publicado no Diário do Alentejo algo da minha autoria.
Melo Garrido disse-me, então, para lhe enviar um texto, para ele analisar e decidir sobre a sua publicação. Assim fiz e, no dia 23 de Dezembro desse ano, era publicado um conto com o título “A Moda”.
Como forma de homenagear os 80 anos do Diário do Alentejo e todos os profissionais que por ele têm passado, é esse conto que agora volto a publicar. Quase quarenta depois, à exceção da guerra colonial, que nele estava presente, mantém uma atualidade que a todos nos deve inquietar e interrogar.
A Moda
Depois de um copo e de uma palmada nas costas, começou a moda. Era o melhor alto da aldeia. Do Alentejo. Até já cantara na rádio. Com o grupo da Casa do Povo.
Nesse dia, houve feriado na aldeia. Todos quiseram ouvir cantar os da moda. Entre estes, Tóino, o melhor alto de Portugal.
O Tóino era um tipo com sorte…
Sorte malvada, dizia ele. Até já lhe morrera um moço na tropa e agora já lá estava outro.
Há anos, ouvindo falar nos que estavam além fronteira, viu-se na mesma situação que eles: um bom carro, um bom par de notas no banco e uma boa vida. Isto, diziam eles, os emigrantes, quando escreviam às mulheres. Os filhos brincavam na lama… Mas que importa isso?
“Tou-me lixando para isto” – disse o Tóino, um dia. Um homem é um homem. Iria para a França. Veriam, então, quem era ele.
Pediu emprestados os oitos contos para o gajo que os passaria. A ele e a mais três da aldeia. Partiram numa noite chuvosa.
“Não chores, mulher” – disse ele à partida – “Verás quem é rico daqui a uns meses”. Beijou os filhos e montou-se no automóvel.
Andou com água pelo pescoço. Viu as pontas das carabinas dos guardas. Mas chegou. São (?) e salvo (?)
De repente viu-se sozinho em Paris. O passador, logo que chegou à capital francesa, deixou-os à mercê da sorte.
Chorou. Como nunca antes o fizera. Nem no enterro do filho que morrera na tropa. Andou aos pontapés. Passou fome. Roubou.
Voltou meses depois. Sem “massa”. Dizendo “merci”, debaixo do qual escondia a miséria. Passou a embriagar-se todas as noites. Depois dava pancada na mulher, som o choro dos filhos.
Não queria trabalhar. Os ricos que o fizessem. Nele, já ninguém punha as mãos em cima.
Esteve na cadeia por roubo. Saiu um mês depois. Roto. Sujo.
Agora, canta a moda na taberna. Reles. Miserável.
Mas isso que interessa?
Não é ele o melhor alto do mundo?
1 Junho




Casa do Povo - onde conheci e comecei a gostar do Diário do Alentejo
( um jornal que é Património Cultural da Região )

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