Caro leitor.
Imagine que se apresta para ler um romance. Que, como
qualquer obra literária do género, terá um ou mais locais onde se desenrola,
personagens principais e secundários, e um enredo, com princípio meio e fim.
Imagine que essa obra tem como palco principal o Baixo
Alentejo, em particular “… caminhos de Serpa ou Moura, as Pias ficam no meio,
Beja já lá para trás…”, mas onde surgem
igualmente Aldeia Nova de São Bento “que depois foi promovida a vila”, a “gloriosa vila acastelada de Portel”, as
“águas do Sado, perto de Alvalade [terra natal do autor do livro], onde lhe
chamam Ribeira”, a Lisboa da Pastelaria Suiça, da Casa das Meias e dos bailes
da Casa do Alentejo, mas também Pangim, Nova Goa, “nas suaves margens do
Mandovi” ou o Cuando-Cubango.
É ainda na margem esquerda que se situa a “aldeia de São
Jorge do Alardo, concelho de Moura (…), um lugarejo perdido”, junto à qual vai
ser recuperado o monte onde se desenrola a maior parte do romance e de onde se observa “uma nesga do Guadiana”. O
monte situa-se no meio de “trevos, estevas e escalrachos (…), de alfazemas,
giestas e alecrins”, onde se levantam “lebres e perdizes e codornizes,
abelharucos ditos melharucos, toutinegras e melros” e onde existem “brancuras
estreitas de muros, casas corridas, baixinhas, sob o tremelicar comprido de
telha moura”.
Quem recuperou este monte foi o Coronel Bernardes e sua
esposa Maria das Dores, a “baronesa” (a cuja família pertencia a propriedade).
Ele, que depois de participar numa guerra entre “um amontoado de brancos de
barba por fazer, de armas na mão” e “uma amálgama de negros com Kalashs e morteiros às costas”, “veio
desabar no meio de uma revolução festiva, estouvada, alegre e algo confusa”.
Depois da reforma tornou-se administrador do “condomínio da Rua de Santo
Estevão à Lapa” e foi precisamente no dia em que os condóminos o humilharam,
demitindo-o de tão nobres funções, que tomou a decisão: “Ala para o Alentejo”.
Maria das Dores, formada em História da Arte e a fazer um
mestrado na Universidade de Évora, carateriza-se pela sua linguagem direta, “Ó
filho, falas bem mas não me aquentas… para mim vens de carrinho”.
Outros personagens principais do romance são o Coronel
Lencastre, camarada de armas de Bernardes e sua esposa Maria José, que vão
também recuperar um monte, perto do outro, deixando para trás o Bairro Azul, em
Lisboa, e Emanuel, um jovem vedor, mestre de xadrez e conquistador, que
percorre estes campos numa “carrinha Renault
4 de cor beje, muito empoeirada”.
É junto ao monte que, por conselho médico, Bernardes e a baronesa vão construir uma piscina,
lugar central da trama. Ainda que a tenham utilizado apenas uma vez, é aqui que
os dois coronéis passam o seu tempo, a beber o “uísque novo” e a ler os dois
jornais diários que Maria das Dores vai buscar a Serpa, “de jipe, de dois em
dois dias”. E foi também na Vila Branca que ela abriu “uma conta à ordem, na
Caixa Agrícola Mútua” e que o coronel descobriu a empresa “Tubos e Jardins, que
representava uma marca alemã de piscinas que dava todas as garantias”.
São desta firma os dois trabalhadores “polivalentes” que vão
preparar o trabalho para o pedreiro, após a abertura do “grande abismo da
piscina”, por uma retroescavadora “com a pá descomunal, munida de garras”.
Durante esse trabalho, as picaretas vão descobrindo ânforas,
tijolos e “umas pedrinhas coloridas que formavam a figura de um bicho do jardim
zoológico (…) um carro puxado por ele (…) uns cachos de uvas”. Descobertos pela
velha empregada do coronel, que quando era “moça pequena, e o lavrador do Monte
dos Chocalhos encontrou um pote dos mouros que havia de baixo de uma oliveira e
aquilo eram só libras de ouro a correr”, viram-se obrigados a repartir pelos
três o tesouro que encontrassem. Tal não veio a acontecer, porque os “sacanas
dos mouros (…) não deixaram foi nada prá gente” e, por isso, “foi o mosaico que
pagou as favas”, entrando os homens “numa fúria destruidora, selvagem e
arrebatada, de modo a que não ficasse caco sobre caco”. Assim se foi a villa romana, antepassada do monte.
Este enredo transforma-se com frequência em fábula, com a
entrada em cena de um melro “bem falante e trocista” e de um mocho, que habitam
numa “oliveira velha”, cujos “possantes ramos”
serviram “para forca de doze liberais capturados por um bando de frades
assassinos a mando do Senhor Rei D. Miguel”. Essas duas aves vigiam de forma
permanente o que se passa no monte e junto à piscina, relatando com todos os
pormenores, de noite ou de dia, quando uma ou outra quer dormir, “amanhã a
gente fala”.
Um dia o melro conta a história que se passou “no Monte dos
Matamouros, ao pé de Viana do Alentejo”. Nesse monte viviam um lavrador e a sua
mulher, “que eram doidos por modas alentejanas”. Como não tinham filhos, “o dinheiro
da cortiça, do azeite e do vinho” servia para “manter três ranchos de
cantadores, que passavam os dias nas modas, e os lavradores com eles”. Farta de
ser acordada e à “sua desvelada criação” todas as manhãs “pelo fortíssimo do
cantochão sempre em crescendo”, “falou a sete das suas comadres”, que todas as
noites “estridulavam gritos de arrepiar e sopravam bafos medonhos (…) a partir
da moda Lá Vai Serpa, lá Vai Moura e as
Pias Ficam no Meio”. “Era a maldição. A casa foi dada como assombrada (…)
Os lavradores desandaram para a sua casa na vila (…) e o monte ficou entregue a
um rendeiro mouco”.
A cidade de Beja está presente em vários momentos deste
romance. Desde logo, na piscina, onde foi edificado um “monumento”, que era
“uma justaposição de livros de mármore, todos do escritor José Saramago, que se
empilhavam, sabiamente desalinhados, quase à altura de um homem”; depois, com a
“arrebatada Soraia Marina, acompanhada pelo conjunto Os Rabejadores do
Cachimbo”, que “acenava dum Uno amarelo
descapotável” e que fazia sucesso em todas as festas (como na da “vilória” de
Grudemil, onde manda um tipo “armado em cacique”) e que “um símile fonético
logo faz convocar uma certa Soror Mariana”; e é ainda a Beja que a baronesa se desloca para um funeral que durou
“até á noite”, o que deixa o coronel desconfiado, até porque ela “tinha sempre
o telemóvel desligado”, ao que ela responde : “Coitada daquela família.
Choravam… Senti uma dificuldade do camandro em deixá-los. Até me sinto repesa
(…) acha próprio um telemóvel num velório, quer dizer, num enterro… Acha”?
Certo dia, o mestre de xadrez desloca-se a Beja para uma
simultânea. Neste momento, a ficção toca a realidade, quer pela “sopa de cação
nos Infantes”, quer pela “conferência no Politécnico”. Mas é sobretudo, quando
ele se dirige à biblioteca “que, na cidade, é aonde todos os caminhos vão dar”,
para entrevistas “para os dois jornais locais”, que somos confrontados com este
excerto, quase no final do romance:
“ Um homem, ainda
novo, de cabelo à escovinha e barba de três dias, ia a entrar, com dois pacotes
de papel pardo que pareciam pesados.
- Doutor Joaquim
Mestre! – gritou ela [a jovem jornalista entrevistadora] com uma risadinha.
- Olhe que me prometeu
uma entrevista…
O homem voltou-se e
sorriu, sem parar de subir os degraus.
- Amanhã logo se vê.
Amanhã.
E desapareceu, portas
vidradas adentro “
Este texto foi escrito no último dia de mais uma edição das
Palavras Andarilhas. Dedico-o à sua alma e grande obreira, a Cristina Taquelim,
ao autarca que deu corpo a essa e a outras iniciativas que colocaram Beja no mapa
cultural do país, Carreira Marques e, principalmente a quem dirigiu a
“biblioteca sem sono” que, com as Andarilhas e demais atividades, transformou
Beja numa “cidade sem sono”, Joaquim Figueira Mestre.
1) Mário de
Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e
Uma Piscina, Coleção Essencial – Livros RTP/Leya, nº 14, 2016, pág. 179 (1ª
edição 2003)
7.9.2019 |
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