![]() |
| O 70 do senhor Inácio era como este. |
Chegar e partir. Ficar e esperar. Esta foi a “rotina” iniciada por uma criança de 10 anos, desejosa de aprender e de saber, terminada aos 17, jovem carregado de certezas e de utopias.Chegar à cidade, partir para a aldeia. Ficar na gare [rodoviária], esperar pelo 70, o mítico autocarro da EVA, cujo carisma era apenas ultrapassado pelo do senhor Inácio, que o conduzia. Quem era mais velho, a máquina ou o homem? Essa, foi sempre a grande dúvida de todos nós, os putos que transportava.
Antes da
partida, a espera, muitas vezes no banco da sala à esquerda da porta de
entrada, com o grande mapa que decorava a parede mesmo à nossa frente. Um mapa
colorido, estilo naif, com as rotas das três transportadoras que aí aportavam:
as verdes (“Setubalense” e EVA) e a vermelha (Rodoviária [do Sotavento]). De
Sagres a Castelo Branco, de Sines a Elvas, ocupando mais de metade do país, “levava-me”
a cidades, vilas e aldeias, a maior parte desconhecidas. Lamentavelmente, a
“modernização” da gare, ocorrida há alguns anos, com a construção de novas bilheteiras e de escritórios nesse local, fê-lo desaparecer.
![]() |
| O mapa da gare era como este, mas com as três empresas |
No final da
espera, o anúncio esperado, no altifalante de um dos maiores e mais modernos
terminais rodoviários do país, recentemente inaugurado: “Senhores passageiros
com destino a Faro, autocarro nº … na pista nº …, com paragens em …”. A minha
paragem era logo uma das primeiras, já que distava apenas 17 quilómetros da
partida, mas adorava seguir no mapa da parede a rota anunciada: … Santa
Vitória, Ervidel … Corte Vicente Anes … Almodôvar… Ameixial, Barranco do Velho
… Faro!
![]() |
| Um pouco antes do Torrão iniciava-se o percurso pela EN, até Faro |
Dessa rota, já ouvira falar, sobretudo das medonhas 365 curvas da Serra do Caldeirão, numa altura em que não existiam IP nem IC, muito menos IR (estradas “regionais”, num país sem regiões!), e a agora mítica EN2, sonho de aventureiros da rodovia, qual Route 66, era a principal ligação rodoviária entre o Alentejo e o Algarve. Estrada longa (cerca de 740 km), atravessando longitudinalmente o país, de Chaves a Faro, tem, nos dias de hoje, direito a site ( https://www.rotan2.pt/ ), passaporte para carimbar e, sinais dos tempos e da sua renascida importância, tem sido ultimamente percorrida por políticos ávidos de conhecer o “Portugal profundo”.
No Barranco do Velho foi construída em 1937 (segundo reza o
painel de azulejos da Cerâmica Lusitana colocado no frontão da sua fachada) uma
“Secção de Conservação” da JAE [Junta Autónoma das Estradas] (percursora das
mais recentes IEP, EP e IP), edifício de apoio aos trabalhadores que tinham
como missão manter em boas condições a estrada. Treze quilómetros mais a norte,
no lugar de Vale Maria Dias, encontrava-se a Casa dos Cantoneiros, datada do
mesmo ano e que, a exemplo de idênticas construções espalhadas pelo país,
alojava dois desses trabalhadores.
Segundo o mapa
de 1972, do Instituto Geográfico e Cadastral, onde o “sul” da autoestrada [A2]
era ainda o Fogueteiro, a ligação Trindade-Castro Verde não passava de uma
estrada secundária (parte da EN391), onde os pontões sobre a ribeira de Terges
(junto a Albernoa e a Entradas) ficavam submersos quando as águas subiam, não
sendo, assim, alternativa à EN2, na ligação para o Algarve.
A ligação
Beja-Faro, anunciada no altifalante, começava, pois, na EN18 (que se juntava à
EN2 em Ervidel), a “estrada nova”/rua da nossa infância (mais tarde batizada de
25 de Abril), por onde não passavam “expressos” e “flixbuses”, mas apenas a
“caminete da carreira [vai a Beja e a Ferreira”, era a nossa cantilena], que
nos transportava à Feira de Agosto do circo, da pinhoada e do frango assado e
que, mais tarde, nos levaria à “Mário Beirão” (no seu primeiro ano de
funcionamento) e ao liceu (por sinal, ambos no mesmo local).
![]() |
| Saídas rodo e ferroviárias de Beja Para o Algarve |
E foi já nos dois
últimos anos passados na “casa amarela”, muito por influência da “professora
rebelde” (de Filosofia) que tanto nos marcou (a quem dediquei uma pequena
crónica, aqui no DA – 12 de abril de 2012) e que, pelas questões que lhe
colocava nas aulas me tratava por Sócrates, que comecei a olhar para o
mapa à minha frente com “outros olhos”.
Quem seria o
Vicente Anes? Provavelmente um pastor que, entre Ervidel e Aljustrel, teria uma
corte onde recolhia o gado. E no Ameixial, haveria ameixeiras tão grandes como
aquela que dava nome ao pego mais profundo da ribeira, onde os moços da aldeia
iam banhar nos dias quentes do verão? E quem seria o velho que dava nome ao
barranco? Dono deste, não seria, porque ribeiras e barrancos não têm donos e, mesmo
nos negros tempos da ditadura, ao contrário dos homens, eram livres. Um velho
que vivia perto do barranco, talvez? Que teria caído no barranco, quem sabe? Mas
ele nem sempre terá sido velho e, assim, talvez o nome do lugar viesse do seu
velho avô/bisavô? Perguntas sem respostas para um jovem, nos anos de 1974 e
1975 do nosso contentamento.
Hoje, o barranco
continua a ser “do velho”, conhecido pela cortiça e pela boa aguardente de medronho
mas, fruto do urbano “turismo de experiência”, tão em voga nos nossos dias,
encontramos nos sites especializados a Tia Bia, (quem seria a Tia Bia, será que
ainda é viva?) “… Restaurante
e Alojamento Local situada em Barranco do Velho, ao sopé da Serra do Caldeirão,
zona de rara beleza paisagística… “ e o Spot na Serra, “… um acolhedor B&B localizado na paisagem rural de Loulé
(…) um ambiente calmo e relaxante ao lado da EN 2 perto da Natureza.”, segundo
informação das suas páginas. Claro que aí também não
podia faltar a sede de um grupo motard [da Serra do Caldeirão].
Todavia, não obstante podermos hoje fazer (no Maps)
viagens virtuais ao longo de toda a EN2 (em alguns troços promovida a IP[3] e,
em algumas dezenas de metros do próprio Barranco do Velho, a IR[124], de googlar
ou usar a IA para saber tudo (ou quase tudo) sobre essa rota, de
encontrarmos no face, no insta ou no X, centenas, milhares
de textos e fotos sobre aldeias e cidades, rios e serras, fauna e flora,
pessoas e festas (como a dança no varão ou os concerto de metal nos convívios
do grupo motard referido), ainda não sabemos a resposta à questão colocada pelo
jovem estudante da aldeia, há 50 anos: quem seria o velho do barranco?
| 14 Novembro 2025 |



















