Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A água do nosso descontentamento.

O Plano de Rega do Alentejo data dos anos 50 do século passado (concluído em 1957, começou a aplicar-se no início da década de 60) , ainda em pleno Estado Novo e nele se contemplava a construção de um conjunto de barragens (23 “grandes” e 73 “pequenas”) que, no total iriam irrigar cerca de 170 mil hectares, para além das outras vertentes previstas (produção de energia e abastecimento público às populações). 
Entre as primeiras barragens construídas contam-se as do Divor, Odivelas, Santa Clara e Roxo. Esta última, inaugurada em 1968, viria a ser oficialmente batizada com o nome de Arantes e Oliveira,o Ministro das Obras Públicas que concebeu e iniciou o plano de rega. Em 1970 a sua gestão passa para Associação de Beneficiários do Roxo (ABROXO), que coordena até hoje os cerca de cinco mil hectares irrigados, dos quais 80% no concelho de Aljustrel e os restantes em Ferreira do Alentejo e Santiago do Cacém.
Só em 1985 é que se inicia o abastecimento público aos concelhos de Aljustrel e Beja, após a construção das respetivas condutas, não só para reforçar as necessidades de consumo das sedes de concelho, mas também as que se criaram nas muitas localidades que só após o 25 de abril viram chegar a tão desejada água às suas habitações.
Mas a história da Barragem do Roxo nem sempre foi um mar de rosas. Logo após a sua inauguração, entre 1974 e 1982 sofreu obras de reparação, devido a problemas estruturais encontrados, o que levou a que, durante doze anos (entre 72 e 83), se atingisse a chamada “capacidade morta” (abaixo de 6,8 milhões de metros cúbicos). Só para se ter uma ideia, a capacidade máxima desta barragem é de 96,3 milhões, sendo o seu “volume estratégico” de 70 milhões. Em 1995 viria novamente a atingir a “linha vermelha”, situação reposta nos três anos seguintes, tendo mesmo ultrapassado o limite em 1997, situação que, entre “altos e baixos”, aconteceria de novo em 2011 (além destes dois anos, também em 1969 e 1990 isso tinha acontecido). Estas situações levam a que, como aconteceu em abril de 2013, tenham de ser efectuadas descargas, aqui documentadas nas fotos de José Ferrolho, no Diário do Alentejo.
         

Entretanto, em  fevereiro de 2002, após indecisões, avanços e recuos, são finalmente fechadas as comportas da Barragem do Alqueva, dando-se início ao seu enchimento, com o qual se poderia finalmente concluir o plano elaborado quase cinquenta anos antes, através da ligação do “grande lago” às restantes barragens, o que tem vindo a acontecer.
Assim, em 7 de julho de 2010, era inaugurado pelo então primeiro-ministro José Sócrates o adutor Pisão-Roxo, concluindo a ligação de 83 quilómetros desde Alqueva até esta barragem, o que foi considerado pelo governante um “momento histórico”, dado que finalizava o projeto, na sua “componente de abastecimento público de água”.
De fato, o Roxo e quatro outras barragens permitem abastecer 280 mil habitantes de treze concelhos alentejanos. Nessa cerimónia, documentada em reportagens televisivas e  radiofónicas , foi ainda inaugurada uma mini-hídrica, que custou cerca de três milhões de euros, destinada à produção de energia ( e que ainda não funcionou, como se pode ler aqui .)
Chegamos, então a agosto de 2015 e eis o paradoxo que, contado, mais parece uma daquelas histórias de Kafka: a Barragem do Roxo está a 39% da sua capacidade máxima (em 2012 estava a 75%), a água cheira a terra e a mofo como há muito não acontecia, o que tem levado a justas reclamações das populações e às pouco esclarecedoras explicações iniciais das entidades responsáveis (no caso de Beja, a EMAS e a Câmara Municipal). No passado dia 5, finalmente, a principal autoridade no assunto (dado que capta, trata e transporta a água), a empresa Águas Públicas do Alentejo (AgdA), emitiu um comunicado em que, além de garantir que a água “pode ser utilizada em segurança”, esclarece que “devido à época estival e ao abaixamento dos níveis de reserva de água, das quais resultam a produção de compostos orgânicos - a geosmina e o 2—metilisoborneol – que são responsáveis pelo cheiro a terra e a mofo na água para consumo humano.” É claro que estas palavras não sossegaram nem calaram os consumidores, já de si sempre reticentes ao uso da água, nomeadamente para beber.
Alguns dias depois, o Presidente da Direção da ABROXO, em declarações a uma rádio local, “reconhece o baixo nível de armazenamento de água”, situação que pode ser colmatada “podendo a todo o tempo a associação de regantes pedir o fornecimento de água à EDIA, pagando a respectiva factura”. Só que, na opinião desse responsável, há dois problemas que se colocam: o primeiro é “o preço de água cobrado aos agricultores, podendo este aumento inviabilizar algumas culturas”; o segundo é o fato de a AgdA não ter pago até ao momento qualquer verba pela captação da água na barragem, situação que até está nos tribunais. Finalmente, “admite fazer todo o sentido um fornecimento  que permitisse aumentar o volume de água armazenado na albufeira, frisando que ainda não houve qualquer contacto nesses sentido por parte da Águas Públicas do Alentejo.
Ou seja, estamos mesmo perante uma situação “kafkiana”, que nos leva a pensar em que país vivemos, dado as coisas tão simples que escapam à nossa compreensão: a água que usamos cheira e sabe mal; pagamo-la (e bem) à EMAS que, em princípio, a pagará à AgdA; todavia, esta não a paga à “dona”, a ABROXO; há um canal de 83 quilómetros, cuja torneira só se abriu há cinco anos, para os governantes e televisões e desde então permanece fechada; a abertura dessa torneira permitiria que os 39% de capacidade da barragem passassem para os 70% (no mínimo) o que, eventualmente, poderia acabar com este tormento para os habitantes dos concelhos de Beja e Aljustrel.
Aliás, basta comparar duas fotos, para se concluir como é diferente a barragem com menos e com mais água :


 Parece fácil, não é? Então, porque não se sentam à mesa a EDIA, a AgdA, a ABROXO e resolvem de uma vez este assunto? É que, não será demais lembrá-lo, a Alqueva, o Roxo, demais barragens, canais, estações elevatórias, entre outros, custaram muitos milhões, pagos com fundos públicos, nacionais e comunitários e, sendo o abastecimento de água às populações um dos principais objetivos, ninguém compreende que, uma vez concluído o sistema, o mesmo não funcione e essas mesmas populações estejam a sofrer as consequências, por incúria ou incompetência. Sem querer fazer a apologia do regime que o ministro servia (antes pelo contrário), talvez valesse a pena que as pessoas responsáveis por esta situação lessem o excerto do discurso atrás reproduzido de Arantes e Oliveira, em 3 de dezembro de 1962, dando o exemplo da Barragem da Graça do Divor (cujas obras estavam em concurso), “cuja construção é antecipada em benefício do reforço do abastecimento de água à cidade de Évora e das exigências da sua expansão industrial”. Isto foi dito há quase 53 anos.
Uma nota final, positiva e construtiva. A dez quilómetros de Beja, na estrada para Aljustrel, há uma pequena barragem, junto ao monte da Chaminé do Passarinho e que há alguns meses estava numa situação parecida (ou ainda pior) que o Roxo. Essa barragem alimenta o regadio da herdade, que tem permitido irrigar, além das culturas tradicionais, como o girassol, outras inovadoras na região, como o milho (o ano passado) e a papoila branca (este ano). Devido ao uso da água da barragem no regadio, esta baixou drasticamente o seu nível, situação lamentável, que observávamos quando passávamos na estrada e víamos as suas margens secas e sem vida. Pois bem, neste momento, a barragem não parece a mesma, encheu (deve estar no limite máximo), e a beleza das suas águas voltou a dar-lhe a vida que tinha, com o verde a despontar de novo nas margens:

E porque aconteceu isso, se não choveu e se as águas da ribeira que a abastecem não fazem milagres? Certamente porque, ao contrário do Roxo, a torneira foi aberta e essa barragem já recebeu a tão necessária água da distante Alqueva, mostrando que, com boa vontade, isso é possível e desejável (e claro, com o seu proprietário a pagar à EDIA a água adquirida).
Toda esta história lembra uma lendária frase que, com uma pequena alteração, bem poderia hoje ser escrita no paredão do Roxo : Abasteçam-me, porra!

Nota : este texto foi escrito no passado domingo, dia 16, mas não tive oportunidade de o publicar até hoje, daí que algumas questões abordadas tenham, entretanto, sido focadas, quer em comunicados das entidades envolvidas, quer na comunicação social. E, embora a situação não tenha sido alterada, houve algumas evoluções positivas que convém citar (ainda que o "Grupo de Acompanhamento" diga que "... não foi considerado eficaz, no presente contexto, efetuar um reforço dos níveis de armazenamento a partir do sistema do Alqueva." :
- o comunicado conjunto das câmaras de Beja e Aljustrel;
- o  comunicado do  Grupo de Acompanhamento da Qualidade da Água do Sistema do Roxo
- o artigo do jornal Público.
- a reportagem da TVI.

Esperemos que, após estas longas semanas de martírio, seja encontrada uma solução que faça regressar a água que corre nas nossas torneiras à normalidade que se exige e que os consumidores merecem.

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