De entre os
vários artigos que desmantelaram a constituição do Estado Novo, havia um (o
236º) que estabelecia a nova forma de organização do território, expressa no
seu número um: “No continente as autarquias locais são as freguesias, os
municípios e as regiões administrativas”.
Se, sobre as
duas primeiras, com mais ou menos problemas, o estipulado na CRP tem sido
cumprido, o mesmo já não se passa com o estabelecimento das regiões. Sobre as
várias vicissitudes por que tem passado este processo, não me vou pronunciar
agora; sobre a regionalização, tive oportunidade de dar a minha opinião, nas
páginas do Diário do Alentejo, no dia 24 de novembro de 2017.
A implementação desta nova estrutura territorial implicaria, obviamente, uma redistribuição de atribuições e competências, acompanhadas, claro, dos meios humanos e financeiros para fazer face ao novo quadro legal. Nenhuma autarquia do país – freguesia ou município – seria capaz de fazer face aos novos desafios com os meios de que dispunha em abril de 1974.
Daí que, ao
longo dos anos se tenha assistido a essa transferência, do poder central para o
local, incluindo ainda a passagem de competências dos municípios para as
freguesias. Quanto às transferências para as regiões, como estas não existem, o
que se tem verificado são transferências do poder central para os seus órgãos
desconcentrados (como no caso da gestão de alguns museus nacionais que passou
para as direções regionais de cultura). Um aparte para mencionar uma situação
um pouco aberrante, que foi a criação, no Plano Rodoviário Nacional (versão de
1998) das “estradas regionais”, talvez inspiradas nas “carreteras
autonómicas” dos nossos vizinhos, prevendo a criação, a curto/médio prazo
das regiões no nosso país. Por exemplo, o troço Aljustrel-Castro Verde,
recentemente requalificado, afinal não integra a já mítica EN2, mas sim a
(quase desconhecida) ER2.
No caso das
transferências do poder central para os municípios, o mínimo que se pode dizer
é que tem sido um processo atribulado, não isento de críticas por parte de
muitos autarcas, que vêm em algumas dessas transferências, não um reforço da
intervenção do poder local, mas sim o descartar de serviços e pessoas dos
vários ministérios para as autarquias, numa primeira fase com a aprovação
destas, a partir de 2022, por imposição.
Entre as várias
áreas, destacam-se, sem dúvida, as transferências na Educação, na Saúde e na
Ação Social. Se no caso da primeira em 2021 já havia 123 municípios que
aceitaram as novas competências, na segunda foram apenas 20 (um dos quais o de
Portel), segundo dados da DGAL. No caso da Ação Social, cujo processo está mais
atrasado, só em 2022 é que essa transferência se verificará. Apenas como
indicação refiram-se algumas nas competências que passarão para as autarquias
nas duas últimas áreas: “… o acompanhamento
dos beneficiários do rendimento social de inserção(…)a conservação dos imóveis
[da saúde], a gestão dos assistentes operacionais, o pagamento de rendas,
limpeza e desinfeção, fornecimento de serviços essenciais e arranjos exteriores”.
(LUSA, 30 março 2021). Por exemplo, no site da CM de Portel já podemos ver que
tem sob a sua alçada, além do centro de saúde, mais sete extensões no concelho.
Perante este acréscimo de competências, não
admira, por isso, a contestação que alguns autarcas e a própria ANMP têm vindo
a manifestar. Por exemplo, Rui Moreira já terá feito contas e, no caso do
Porto, só a Ação Social irá significar um aumento de despesa da autarquia de 7
milhões de euros, já que, para uma despesa nessa área de 9 milhões, irá apenas
receber cerca de 2 milhões (JN, 3 maio 2021). Na Educação, é a própria ANMP a
denunciar, num inquérito que fez, que “… as Câmaras Municipais estão a gastar em
educação o dobro das verbas que o Estado dá (…) As
autarquias acusam o governo de calcular em baixa o valor a atribuir. Em 2020,
mais de 180 municípios gastaram com educação 160 milhões de euros a mais do que
os cerca de 100 milhões que receberam do Estado (…) a associação acusa o
governo de estar a fazer as contas por baixo nos últimos anos e de não cumprir
os mínimos” (TSF, 5 maio 2021).
Depois, há ainda algumas particularidades
que, muitas vezes não são tidas em conta e que não se refletem nas verbas a
atribuir às autarquias. Vejamos o caso de Beja, por exemplo. Fruto de
circunstâncias várias que não interessa aqui e agora abordar, a rede de
equipamentos desportivos na cidade é quase toda ela municipal (situação que vem
até de antes do 25 de abril), com todos os custos de funcionamento a isso
inerentes. Em outros municípios (Évora, por exemplo), é o contrário, a grande
maioria dos equipamentos – estádios, pavilhões, piscina coberta – pertence aos
clubes, sendo municipais uma pequena parte. A própria pista de atletismo
inaugurada em 2016, foi construída pelo IPDJ (a de Beja, que data de 1999, foi
da responsabilidade da autarquia).
Para além destes equipamentos, refiram-se
também os culturais, de cuja rede Beja deve sentir um legítimo orgulho, desde a
Casa da Cultura, à Biblioteca Municipal, ao Pax Julia, ao Museu Jorge Vieira e,
mais recentemente, ao Centro Unesco ou ao Centro de Arqueologia e Artes.
E, se no caso dos equipamentos
desportivos, são os clubes os seus grandes dinamizadores, no caso dos
culturais, não obstante o bom trabalho dos agentes e associações dessa área,
tem de ser a autarquia a grande dinamizadora de uma política cultural coerente
e consistente (algo que não se tem visto no mandato que está a terminar), com a
afetação dos meios humanos, financeiros e técnicos que tal acarreta, acrescidos
dos necessários em outras áreas, como a limpeza urbana ou a manutenção das ruas
e estradas municipais.
Sem as devidas contrapartidas
financeiras, o que espera os autarcas que vão ser eleitos em 26 de setembro não
é nada animador, já que a partir de 2022 irão receber um pacote de novas
competências, nas áreas atrás indicadas e em outras que, mais do que um sinal
da importância reconhecida ao poder local e aos seus atores (funcionários
incluídos), mais não é do que um presente envenenado que o poder central lhes
atribui, em nome de uma descentralização apregoada, mas pouco executada.
Uma nota final, ainda em relação a Beja.
Não deixa de ser estranho (no mínimo) que a área em que a autarquia recebeu
mais competências em 2021 – a Educação – seja a única que não tenha, até ao
momento, dirigente intermédio nomeado, ao contrário de todas as outras em que
decorreram concursos na mesma altura. Numa área tão complexa, não se compreende
que tal não tenha ainda acontecido.
23 julho |
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