“Essa
torrente onde se misturava a alegria redentora da libertação com a esperança
sem fim e também a raiva contra a opressão, a exploração e o medo do passado
relativamente ao qual era preciso fazer justiça, para que não voltasse, nunca
mais. Um levantamento popular vindo de baixo, do âmago da condição social dos
que nunca tinham tido voz e entravam tumultuosamente na história.”
Fernando
Rosas, Ensaios de Abril, pág. 98
Em entrevista
dada à revista História (nº 46, outubro 2023), António Costa Pinto (meu antigo
colega de faculdade, professor, investigador e conhecido comentador político
televisivo), refere a “grande dinâmica de movimentação da sociedade civil”,
verificada após o 25 de Abril, “na conjuntura de 74 e 75”, fruto da “genuína
dimensão de participação política, não só eleitoral, mas também social”. Ora,
segundo este historiador e especialista em ciência política, “… rapidamente,
com a consolidação da democracia, seguiu-se uma etapa de desmobilização…”, que
o leva a esta conclusão: “Portugal tem um baixo nível de participação global,
não é apenas política [mas também social]…”.
Cinquenta anos
depois do 25 de Abril, importa refletir sobre os motivos que levam a este
“baixo nível de participação política”, contrário a um dos desígnios da data
libertadora que tantos sonhos alimentou: democratizar.
Tenho a
convicção de que, para reforçar a Democracia e combater o populismo que a
ameaça, é preciso incentivar e apoiar a participação dos cidadãos nas mais
variadas áreas da sociedade. Infelizmente, não é isto que tem acontecido em
muitas ocasiões. Basta ver a desconfiança e até a hostilidade com que, não
poucas vezes, foi encarado o movimento de cidadãos bejenses, nascido no início
de 2011, para lutar pela manutenção das ligações ferroviárias diretas a Lisboa.
Um responsável
político regional, ao anunciar, em 2017 o lançamento de “um concurso [em 2018]
para aquisição de novas carruagens” com vista ao retomar dessas ligações,
acrescenta que isso só se concretizava “depois de meses de reuniões e contactos
sem alaridos” (esse concurso, para automotoras bimodo – diesel e elétricas – só
seria lançado em 2021 e prevê-se que as primeiras cheguem em 2025). O então
deputado omitia, assim, as inúmeras reuniões que elementos do Beja Merece+
tiveram com governantes, grupos e comissões parlamentares, além, claro, das
petições com milhares de assinaturas e das ações de rua com centenas de
pessoas. Curiosamente, há poucos dias, esse mesmo político, ao noticiar a
instalação do aparelho de ressonância magnética no hospital de Beja, volta a
bater na mesma tecla, ao referir “todos aqueles que trabalharam, sem gritaria,
para que este dia chegasse”.
Esta omissão
reflete-se igualmente nas autodenominadas “comemorações oficiais” do
cinquentenário da Revolução dos Cravos, em Beja: nas várias conferências
programadas não cabe o debate sobre aquele que foi o maior movimento de
participação cívica na região que, para além do seu propósito inicial, trouxe
para a discussão pública a reivindicação de melhores acessibilidades rodoviárias
ou a rápida definição do futuro do aeroporto.
Um outro aspeto
sobre o qual se falou aquando das últimas eleições legislativas, foi o facto
de, nos círculos eleitorais mais pequenos, com é o caso de Beja, que só elege
três deputados, uma grande parte dos votos não ter qualquer reflexo nessa
eleição (28% dos eleitores em 2024, 36% em 2022). Isto faz com que, eleição
após eleição, muitos cidadãos, que escolhem de forma consciente em quem votar
(não acolhendo a teoria do “voto útil”), acabam por se sentir excluídos do
sistema, uma vez os seus votos apenas contam para a percentagem nacional desses
partidos/coligações. Tal podia ser minimizado com a existência do tão falado
(na altura das eleições) círculo de compensação, em vigor nos Açores, destinado
a compensar os partidos penalizados nos círculos eleitorais mais pequenos. Como
sempre, está nas mãos dos dois maiores partidos a alteração da lei eleitoral,
nesse sentido. Tenho dúvidas que tal venha a acontecer e que em futuras
eleições se esteja de novo a lamentar essa lacuna e que pode mesmo limitar a
participação dos cidadãos na vida democrática.
Uma outra
lacuna que PS e PSD já podiam ter resolvido tem a ver com a regionalização, um processo
que avançou baseado numa distribuição das CCDR pelos dois partidos, de acordo
com a sua implantação autárquica. Através de “eleições” reservadas a um colégio
eleitoral de autarcas, à exceção do Alentejo, em que houve dois candidatos,
foram “eleitos” presidentes desses órgãos os candidatos únicos nomeados por
António Costa e Rui Rio. Sem entrar, aqui e agora, em pormenores sobre este
processo, sobre o qual tenho algumas dúvidas (isto, sem pôr em causa a opinião
favorável que tenho relativamente à implementação da regionalização), reitero o
que já escrevi aqui, no Diário do Alentejo, em crónica publicada no dia 24 de
Novembro de 2017: esta grande reforma do nosso sistema político, que consta na
constituição aprovada em 1976, só será verdadeiramente democrática quando os
cidadãos nela puderem participar, através do seu voto, para a eleição de uma
assembleia regional, cujos eleitos sejam os seus verdadeiros representantes na
região. Essa assembleia terá o papel fiscalizador das decisões do governo
regional, diga-se CCDR, algo que atualmente não existe.
Para além dos
níveis nacional e regional, também a nível local (e, neste caso, falando de
Beja) há situações que não contribuem favoravelmente para uma verdadeira
participação dos cidadãos na vida da sua comunidade. Por falta de elementos,
não me quero referir ao instrumento que, neste momento, a autarquia invoca como
símbolo dessa participação, o Orçamento Participativo. Sendo uma iniciativa
interessante, adotada em vários concelhos do país, não deverá ser, no entanto,
a única a incentivar essa participação cívica.
Refiro-me, em
concreto a três órgãos importantes para a prossecução das melhores políticas
nas respetivas áreas: o Conselho Municipal de Educação, o Conselho Local de
Ação Social e o Conselho Municipal da Cultura. Sobre os dois primeiros, não se
conhecem quaisquer atividades, uma vez que não é dado conhecimento das decisões
tomadas nas suas reuniões, nem sequer da realização destas (partindo do
princípio que estes dois órgãos estão a funcionar, como deveria acontecer, e
que reúnem regularmente). De qualquer modo, é uma lacuna que não deixa de ser
sentida, nomeadamente em duas áreas em houve mais transferências de
competências para as autarquias locais e cujo funcionamento democrático deveria
ser exemplar.
Já quanto ao
Conselho Municipal da Cultura, a situação é mais preocupante. O seu regulamento
foi publicado no Diário da República, no dia 30 de Janeiro de 2008, numa época
em que pouco ou nada se conhecia acerca da existência de entidades semelhantes
no nosso país, após um processo muito participado pelos agentes e associações
culturais locais, que contribuíram decisivamente para o seu conteúdo. Após as
eleições de 2009, e com a mudança do executivo municipal, este importante instrumento para a participação
de agentes e associações culturais na discussão e formulação de políticas
culturais concelhias e regionais, foi pura e simplesmente metido na gaveta, de
onde não mais saiu. Neste momento, esse regulamento nem consta no site da Câmara
Municipal de Beja, o que é um contrassenso, uma vez que, formalmente, o CMC ainda
não foi extinto.
Finalmente,
numa altura em que se festejam os cinquenta anos do 25 de Abril, volto às
comemorações a decorrer em Beja, já atrás referidas. Quando tive conhecimento
da aprovação pela Assembleia Municipal realizada no dia 13 de julho de 2023, da
chamada "Comissão Organizadora das Comemorações do
50º Aniversário do 25 de Abril de 1974", escrevi numa rede social o
seguinte: “Em Beja parece que
não há mais vida para além dos partidos políticos (que têm, obviamente, o seu
insubstituível lugar na Democracia reimplantada em 1974, mas que não são os
únicos construtores e protagonistas da vida política, económica, social,
educativa, cultural, desportiva do concelho, ao longo dos últimos quase 50
anos).” Tudo isto porque essa comissão era composta apenas por eleitos dos três
grupos políticos representados dessa assembleia (7 elementos) e da Câmara
Municipal (dois elementos). Ou seja, ficavam de fora representantes da chamada
sociedade civil, impedindo a sua participação na elaboração de um único
programa no concelho de Beja, que contivesse todas as iniciativas organizadas
pelas diferentes entidades, incluindo, naturalmente, os dois órgãos autárquicos
municipais.
E, assim, temos em Beja, as autodenominadas “comemorações
oficiais” (com direito a carimbo próprio nos materiais de divulgação) e as
“outras”, as que não são organizadas por essa comissão, algo que, em minha
opinião, não tinha de acontecer, numa efeméride tão importante como é a
comemoração de 50 anos de liberdade e de democracia.
Apenas como exemplo, refiro três iniciativas em que estive
presente e que não constam das “comemorações oficiais”, sendo que qualquer uma
delas merecia ter tido o destaque que estas têm : uma tertúlia, no espaço Os
Infantes, onde três cidadãos relataram as suas vivências, em diferentes
contextos e locais, antes e após o 25 de Abril; a apresentação do livro e da
exposição sobre os mineiros de Aljustrel, na Biblioteca Municipal; a
conferência “Da lei da fome ao 25 de Abril”, pelo professor Fernando Oliveira Baptista,
no Núcleo Museológico da rua do Sembrano.
Numa altura em que se reflete sobre tão importante data na
nossa história coletiva, qualquer destas três iniciativas deu contributos significativos
para um melhor conhecimento das suas causas, um dos grandes objetivos que devem
nortear as comemorações, oficiais ou não.
Com esta discriminação que não se compreende, perdeu-se,
deste modo, uma oportunidade para cumprir um dos grandes desígnios da data que
agora festejamos: a participação livre e democrática dos cidadãos na vida das
suas comunidades, deixando de ser apenas espetador passivo e reprimido, como
era na ditadura, para ser ator livre e interveniente da sua “polis”, direito e
dever, ao mesmo tempo, dos cidadãos atenienses de há 2500 anos.
19 de Abril de 2024