Arquivo Fotográfico do Diário do Alentejo

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Presente envenenado

 

 
Casa da Cultura

Foi há pouco mais de três meses (no dia 2 de abril) que se comemorou o 45º aniversário da aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP), que substituiu a de 1933, a que suportou a ditadura derrubada em 25 de abril de 1974.

De entre os vários artigos que desmantelaram a constituição do Estado Novo, havia um (o 236º) que estabelecia a nova forma de organização do território, expressa no seu número um: “No continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”.

Se, sobre as duas primeiras, com mais ou menos problemas, o estipulado na CRP tem sido cumprido, o mesmo já não se passa com o estabelecimento das regiões. Sobre as várias vicissitudes por que tem passado este processo, não me vou pronunciar agora; sobre a regionalização, tive oportunidade de dar a minha opinião, nas páginas do Diário do Alentejo, no dia 24 de novembro de 2017.  http://notasaesquerda.blogspot.com/2021/07/e-se-falassamos-sobre-regionalizacao.html

A implementação desta nova estrutura territorial implicaria, obviamente, uma redistribuição de atribuições e competências, acompanhadas, claro, dos meios humanos e financeiros para fazer face ao novo quadro legal. Nenhuma autarquia do país – freguesia ou município – seria capaz de fazer face aos novos desafios com os meios de que dispunha em abril de 1974.

Daí que, ao longo dos anos se tenha assistido a essa transferência, do poder central para o local, incluindo ainda a passagem de competências dos municípios para as freguesias. Quanto às transferências para as regiões, como estas não existem, o que se tem verificado são transferências do poder central para os seus órgãos desconcentrados (como no caso da gestão de alguns museus nacionais que passou para as direções regionais de cultura). Um aparte para mencionar uma situação um pouco aberrante, que foi a criação, no Plano Rodoviário Nacional (versão de 1998) das “estradas regionais”, talvez inspiradas nas “carreteras autonómicas” dos nossos vizinhos, prevendo a criação, a curto/médio prazo das regiões no nosso país. Por exemplo, o troço Aljustrel-Castro Verde, recentemente requalificado, afinal não integra a já mítica EN2, mas sim a (quase desconhecida) ER2.

No caso das transferências do poder central para os municípios, o mínimo que se pode dizer é que tem sido um processo atribulado, não isento de críticas por parte de muitos autarcas, que vêm em algumas dessas transferências, não um reforço da intervenção do poder local, mas sim o descartar de serviços e pessoas dos vários ministérios para as autarquias, numa primeira fase com a aprovação destas, a partir de 2022, por imposição.

Entre as várias áreas, destacam-se, sem dúvida, as transferências na Educação, na Saúde e na Ação Social. Se no caso da primeira em 2021 já havia 123 municípios que aceitaram as novas competências, na segunda foram apenas 20 (um dos quais o de Portel), segundo dados da DGAL. No caso da Ação Social, cujo processo está mais atrasado, só em 2022 é que essa transferência se verificará. Apenas como indicação refiram-se algumas nas competências que passarão para as autarquias nas duas últimas áreas: “… o acompanhamento dos beneficiários do rendimento social de inserção(…)a conservação dos imóveis [da saúde], a gestão dos assistentes operacionais, o pagamento de rendas, limpeza e desinfeção, fornecimento de serviços essenciais e arranjos exteriores”. (LUSA, 30 março 2021). Por exemplo, no site da CM de Portel já podemos ver que tem sob a sua alçada, além do centro de saúde, mais sete extensões no concelho.

Perante este acréscimo de competências, não admira, por isso, a contestação que alguns autarcas e a própria ANMP têm vindo a manifestar. Por exemplo, Rui Moreira já terá feito contas e, no caso do Porto, só a Ação Social irá significar um aumento de despesa da autarquia de 7 milhões de euros, já que, para uma despesa nessa área de 9 milhões, irá apenas receber cerca de 2 milhões (JN, 3 maio 2021). Na Educação, é a própria ANMP a denunciar, num inquérito que fez, que “… as Câmaras Municipais estão a gastar em educação o dobro das verbas que o Estado dá (…) As autarquias acusam o governo de calcular em baixa o valor a atribuir. Em 2020, mais de 180 municípios gastaram com educação 160 milhões de euros a mais do que os cerca de 100 milhões que receberam do Estado (…) a associação acusa o governo de estar a fazer as contas por baixo nos últimos anos e de não cumprir os mínimos” (TSF, 5 maio 2021).

Depois, há ainda algumas particularidades que, muitas vezes não são tidas em conta e que não se refletem nas verbas a atribuir às autarquias. Vejamos o caso de Beja, por exemplo. Fruto de circunstâncias várias que não interessa aqui e agora abordar, a rede de equipamentos desportivos na cidade é quase toda ela municipal (situação que vem até de antes do 25 de abril), com todos os custos de funcionamento a isso inerentes. Em outros municípios (Évora, por exemplo), é o contrário, a grande maioria dos equipamentos – estádios, pavilhões, piscina coberta – pertence aos clubes, sendo municipais uma pequena parte. A própria pista de atletismo inaugurada em 2016, foi construída pelo IPDJ (a de Beja, que data de 1999, foi da responsabilidade da autarquia).

 
Complexo Desportivo Fernando Mamede   
                                       
                                                                             Centro Social do Lidador

Para além destes equipamentos, refiram-se também os culturais, de cuja rede Beja deve sentir um legítimo orgulho, desde a Casa da Cultura, à Biblioteca Municipal, ao Pax Julia, ao Museu Jorge Vieira e, mais recentemente, ao Centro Unesco ou ao Centro de Arqueologia e Artes.

E, se no caso dos equipamentos desportivos, são os clubes os seus grandes dinamizadores, no caso dos culturais, não obstante o bom trabalho dos agentes e associações dessa área, tem de ser a autarquia a grande dinamizadora de uma política cultural coerente e consistente (algo que não se tem visto no mandato que está a terminar), com a afetação dos meios humanos, financeiros e técnicos que tal acarreta, acrescidos dos necessários em outras áreas, como a limpeza urbana ou a manutenção das ruas e estradas municipais.

Sem as devidas contrapartidas financeiras, o que espera os autarcas que vão ser eleitos em 26 de setembro não é nada animador, já que a partir de 2022 irão receber um pacote de novas competências, nas áreas atrás indicadas e em outras que, mais do que um sinal da importância reconhecida ao poder local e aos seus atores (funcionários incluídos), mais não é do que um presente envenenado que o poder central lhes atribui, em nome de uma descentralização apregoada, mas pouco executada.

Uma nota final, ainda em relação a Beja. Não deixa de ser estranho (no mínimo) que a área em que a autarquia recebeu mais competências em 2021 – a Educação – seja a única que não tenha, até ao momento, dirigente intermédio nomeado, ao contrário de todas as outras em que decorreram concursos na mesma altura. Numa área tão complexa, não se compreende que tal não tenha ainda acontecido.

23 julho





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